Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


18-12-2021

60º Aniversário da Libertação de Goa.(2ª parte) PEDRO MASCARENHAS


GOA, 19/12/1961 – Libertação e não Invasão Dividir para reinar. Se cada pedaço da Índia tivesse sido colonizada, por exemplo, pela Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Itália, Áustria, Rússia, Turquia, Grã-Bretanha, Holanda, Dinamarca e Portugal, etc., então, por vontade expressa dos ex-colonizadores, a Índia deveria ter sido pulverizada em mil terras independentes, eternizando o lema «dividir para reinar» como no tempo dos maharajas. Há mil anos atrás Portugal não existia, mas hoje existe e foi fundado pela força das armas. Foi feito um referendo aos habitantes para indagar se queiram formar um país que se chamaria Portugal? Foi feito um referendo ao povo português sobre se Portugal deveria ou não fazer parte integrante de União Europeia e se o escudo deveria ou não ser substituído pelo euro? Não, em nenhum destes casos foi feito uma consulta popular. Numa democracia, para bem do povo, às vezes mal informado, é preciso impor decisões acertadas. A união dos europeus acabou com as velhas rivalidades e guerras (incluindo duas guerras mundiais), franceses contra ingleses, alemães contra franceses, italianos contra gregos, etc., como aconteceu no passado. Na Índia já não há guerras entre maharajas ou nawabs (excluindo revoltas minoritárias pontuais), mas estabilidade e unidade. Hoje na Índia os benefícios da unidade são incalculáveis e bem visíveis nesta era de globalização. Pode-se circular para qualquer ponto da Índia sem necessidade de passaportes, ou movimentar mercadorias sem barreiras alfandegárias. Não há mais guerras entre reinos dentro da Índia que a enfraqueceram no passado e possibilitaram a entrada dos invasores estrangeiros. O Paquistão foi separado e criou-se um inimigo que faz consumir muitas energias ao povo indiano e dispêndio do erário que seria necessário e útil noutros campos. A unidade só acarreta ganhos para a maioria do povo. A guerra civil americana (1861/65) foi necessária para esmagar os onze estados confederados sulistas racistas pro-esclavagistas; caso contrário não existiria hoje uma América unida, uma superpotência que tanto deu ao mundo com as suas descobertas e invenções, desde os computadores à NASA.    

Libertação interna. A Constituição da República da Índia sacudiu os privilégios de certas classes que teimavam em manter o estatuto das castas, proibindo-o. Na pomposamente chamada Índia Portuguesa, sobretudo nas aldeias, a tradição e o peso de castas esmagavam, pesadamente, os desprivilegiados. Ora, estando agora Goa libertada, permitiu a aplicação dessa mesma Constituição nesse território, abanando de vez, os privilégios dos batkars (latifundiários). Nas escolas, e mesmo no ensino superior, a obtenção do canudo era hereditário através de «cunhas» e favores, mesmo que fossem alunos medíocres. O futuro já lhes estava garantido, de geração em geração, tal como numa monarquia a coroa tinha de ser passada ao sucessor, de pais a filhos, mesmo que estes fossem idiotas. Eis outro extrato impressionante do Prof. Teotónio de Souza:..(Citacão). «Eram das famílias Silva, Paes e Gama, que constituíam a nobreza rural indo-portuguesa de Moirá - Goa. Vi-as no esplendor da sua glória. (……..) José da Gama era bibliotecário da câmara municipal do concelho em Mapuçá. Um filho da família Gama era também um ajudante da missa. Chamava-se «Piki» (pequeno). Ele era muito clarinho e ouvi pessoas na capela a verem nele um «anjinho». Os santos e anjos tinham que ser brancos nessa altura. O Piki foi também meu colega do curso primário. A dupla ligação igreja-escola fez de nós bons companheiros e ganhou para mim a aceitação da família Gama. As três famílias formavam uma «troika» que dominava a vida da aldeia com as suas ligações com a administração portuguesa. Eram por isso respeitados (temidos) na aldeia. Quem os contradissesse corria risco de duras represálias. Eram donos de palacetes, com quintas por tudo que é sítio (muitas delas apropriadas dos pobres da aldeia sem meios de pagar os impostos), com «poské» e «poskim» (bastardos considerados adotivos) para os servir como escravos, sem direitos de casamento ou de fazerem uma vida independente. Uma das recordações ou experiências muito positivas que eu guardo do ensino primário da era portuguesa em Goa é a prática de exames orais públicos já no primeiro grau ou na 3ª classe. Para uma criança de oito e nove anos isso já dava uma certa autoconfiança perante o público. E com os exames daquele tipo, os próprios professores ficavam sujeitos ao juízo dos presentes. Favoritismos óbvios tornavam-se difíceis. Infelizmente, em face da ignorância e indisponibilidade da grande maioria das populações rurais para estarem presentes a tais exames reduzia bastante esse aspeto positivo. Foi o que aconteceu no meu caso. Ninguém da minha família esteve presente para o meu exame final do primeiro grau. A minha professora de casa exprimiu o seu desagrado com a decisão da professora externa no júri que me declarou "otimamente habilitado", enquanto o meu colega Piki saía com distinção depois de ter respondido a várias perguntas com o rubro da cara e abanos de cabeça. A minha professora Belmira da Cruz diria mais tarde à minha mãe que ela não pactuava com injustiças, mas não era sempre capaz de vencer as pressões sociais que forçavam alguns diferendos nos resultados dos exames. Esta experiência influenciou a minha vida a longo prazo...(fim da citação).».

Orgulho indiano. Evidentemente estes ex-privilegiados empregarão o termo «invasão». Eram os Miguéis de Vasconcelos de Goa. Os traidores e  colaboracionista. Aos latifundiários, que desprezavam o konkani por a considerarem «língua dos criados» e que não lhes convinham assistir à ascensão dos explorados, dos fracos, dos humildes, e sobretudo dos hindus, que hoje ombreiam lado a lado como cidadãos livres sem qualquer receio ou complexos em todos as áreas da sociedade. É por isso, a partir de 1962, os filhos de certos batkars impedidos de obter os «canudos garantidos» partiram para outras paragens: Nova Zelândia, Austrália, Canadá e Portugal (aqui, confortados pela ditadura inventaram patranhas sobre Goa, relatando destruições das igrejas, prisões em massa, mas o 25 de Abril liquidou-os definitivamente). Os que ficaram em Goa, enfrentaram concorrentes de igual para igual na escola, no emprego, no desporto, etc. Aqueles que exerceram a violência sobre os hindus e cristãos pobres foram os primeiros a fugir porque a legítima vingança, que resultava de muitos anos de raiva reprimida, não se fez esperar. Lê-se no suplemento do Diário de Goa de 1 de Fevereiro de 1956 o seguinte: «Ernesto Rodrigues de Curtorim, agricultor e proprietário modelo, dava “ bom pão e bom pau” aos mandukares (trabalhadores).» O saudoso Assis Milton O. Rodrigues, natural de Goa e fundador de uma instituição para invisuais em Moçambique, contou-me que era frequente ver trabalhadores rurais nus amarrados às árvores, quais S. Sebastião, e cobertos de mel por ordem de batkares como medida retaliatória (o agente Casimiro Monteiro da PIDE/DGS em Goa fez a mesma coisa em relação aos opositores). Eram deixados assim com as mãos atadas nas costas para que as vorazes formigas, atraídas pelo mel, roessem, impiedosamente, a pele desses infelizes. Lourenço M., uma vez, confidenciou-me: «- Um conhecido meu, informador da PIDE, em 1962 abandonou precipitadamente Goa, pensando que estaria a salvo em Portugal, mas o 25 de Abril fê-lo fugir, novamente e desta vez para o Brasil». A democracia em Goa e em Portugal fez descarrilar, definitivamente, certos goeses que foram favorecidos e sentiram-se protegidos pelo regime anterior. Qual é o problema de Goa presentemente? Corrupção? Até na Europa há corruptos! Não houve guerra civil e a presença de tropas estrangeiras para assegurar a paz em Goa, como aconteceu em Timor-leste (2006). As línguas marati e konkani são faladas e escritas sem restrições, há liberdade de imprensa, de expressão, de circulação, existem vários partidos políticos, não há pides nem casimiros monteiros, nem inquisidores. Um jovem católico de Goa, portador de passaporte indiano, que deu uma volta pela Europa, depois de ter frequentado um estágio extracurricular numa capital europeia, confidenciou-me que tinha orgulho em ser indiano porque os colegas europeus, com quem conviveu, elogiaram a Índia pela sua capacidade empreendedora em todas as áreas, incluindo nas da ciência nuclear e espacial. A sua pátria estava agora em paridade com as grandes potências e era respeitada.

Foi um confronto entre o exército indiano que trazia a democracia e o outro que defendia a ditadura.        

Definitivamente, o estado de Goa, livre e democrático, faz parte integrante da Índia, tal como o Algarve em relação a Portugal. Portugal é um estado-membro da União Europeia.        

Pedro Mascarenhas

Já tinha sido publicado na Revista "Ecos d'Oriente"