Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


26-03-2022

INVASÃO DA UCRÂNIA Sobre boicotes culturais retrospectivos - Rui Cardoso Martins Escritor


"A lucidez, a coragem de dizer não à barbárie e a distinção que se impõe!"

 

Rui Cardoso Martins: nasceu em Portalegre, a 25 de Março de 1967. É um escritor, jornalista e argumentista português. Foi repórter e cronista no Público, e um dos fundadores das Produções Fictícias, sendo um dos escritores do programa Contra Informação, da RTP 1. Para o cinema, escreveu o guião de "Zona J" e (em parceria) o da longa-metragem "Duas Mulheres".

O seu primeiro livro, "E Se Eu Gostasse Muito de Morrer", de 2006, está na quarta edição em Portugal, tendo sido publicado na Espanha e Hungria. O seu segundo livro, "Deixem passar o homem invisível", foi premiado com o Grande Prémio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores/Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas

 

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INVASÃO DA UCRÂNIA por Rui Cardoso Martins

Sobre boicotes culturais retrospectivos

Nesta capa está escrito, em russo, "E Se Eu Gostasse Muito de Morrer", Rui Cardoso Martins.

É uma frase de Raskólnikov, personagem de Dostoiévski em "Crime e Castigo". Tive a honra de o apresentar a 11 de Dezembro de 2021 (menos de três meses, parece outro século, outro mundo) na bela Biblioteca Maiakosvki, de São Petersburgo, em cima do gelado rio Fontanka. Devo-o a muitas pessoas, tradutores, editores, professores, diplomatas, estudantes — até um segurança de museu apaixonado por português lá estava de novo... — que agora lutam, desesperadas, silenciadas, talvez presas, pela liberdade contra a tirania de Putin e esta guerra iníqua. Conheci muitos em Moscovo, São Petersburgo, Novosibirsk (Sibéria). Penso nestes democratas enquanto escrevo aqui.

Em nome da liberdade, da arte e da responsabilidade, obviamente irei continuar a ler, a ver, a ouvir, a assistir, a estudar, a recomendar e, espero, a crescer, com os grandes artistas russos e ucranianos. Muitos deles foram silenciados, deportados ou mesmo mortos pela sucessão de tiranias na Rússia, desde os czares do império, e durante aquilo a que, na reportagem "Salada Russa" (Granta 10, Revoluções, Out. 2017), escrita a propósito da literatura russa e da minha visita nos 100 anos da revolução, chamei "a mais negra matéria do comunismo soviético."

Continuarei a ler e a comprar Púchkin, Gógol (natural de Kiev, falava ucraniano e começou por escrever contos sobre a cultura e folclore do seu povo), Dostoiévski, Turgueniev, Lermontov, Tolstoi, Tchekov, Zazúbrin, Gorki, Mandelstam, Essenine, Blok, Cholokov, Platónov, Bulgakov, Kharms, Grossman, Nabokov, Chalamov, Soljenitsine, Erofeev, Dovlatov, Limonov, isto do apanhado de escritores* de quem consegui ler pelo menos qualquer coisa (obrigado aos tradutores). Uns são heróis para mim, outros critico, outros tomaram posições lamentáveis, mas fazem parte do que sou, do que qualquer escritor é, e da História.

*O número e qualidade de autores russos é de tal modo que um amigo me lembrou ainda Pasternak (poeta, não só romancista), o que de imediato me lembrou Tsvetaeva, sua amiga, de quem também tenho poemas na “Antologia da Poesia Russa”, de Manuel Seabra.

No entanto, e obviamente também, irei combater com palavras e, por assim dizer, levantar uma Cerca de Higiene Pessoal a todos os artistas vivos (russos e não russos) que, neste momento de barbárie de Putin, e enquanto o genocida não cair (e depois) expressarem apoio, compreensão ou "neutralidade" perante um regime imperialista que, sem qualquer razão válida, iniciou este sangrento genocídio que ameaça arrasar a Ucrânia (vai falhar, porque a cultura de um povo renasce na injustiça), a Rússia, a Europa e o mais. Por exemplo, espero as palavras do ainda vivo (59 anos) Viktor Pelevine, de quem tenho duas obras mas que escreveu um romance — "Batman Apollo", 2013 — em que as personagens ridículas são a oposição a Putin e as corajosas Pussy Riot, não o homenzinho com botões vermelhos e botox na cara.

Tchaikóvski não tem culpa, Valeri Gergiev tem.

O realizador Tarkóvski tem culpa de quê, que até foi exilado e afastado da família?

Ainda ontem tive oportunidade de ver um filme poderoso, terrível, de Alexei Balabanov (1959-2013) Chama-se "Cargo 200", o código que o "Homo Sovieticus" usava para os caixões dos soldados do Afeganistão (não ponho a ligação youtube disponível porque é mesmo violento).

Aí vêm mais toneladas de corpos de jovens russos e vai ser precisa a coragem dos artistas russos democratas, e a nossa ajuda à sua coragem, para mostrar ao Mundo e derrubar o monstro.