13-03-2022OS RUSSOS DOS MARES DO SUL - Francisco Seixas da Costa
OS RUSSOS DOS MARES DO SUL Há quase duas décadas, quando vivia em Viena, fui convidado, pago pela OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), para intervir numa conferência em Sharm el-Sheikh, no extremo sul da península do Sinai, no Egito, organizada em cooperação com uma entidade egípcia ou internacional cujo nome já não recordo. Passávamos os dias encafuados em salas fechadas, em graves discussões sobre temas de segurança, com um belo sol, lá fora, a apelar ao baldanço. Mas eu era "keynote speaker" e tinha de levar muito a sério o convite que me tinha sido formulado. Só ao final da tarde é que me aventurava a dar um breve mergulho no Índico. A cidade de Sharm el-Sheikh não tem, ao que me lembro, a menor graça, é um mar de hotéis, uns melhores do que outros, todos aproveitando as águas macias e transparentes do Índico, cheias de corais - às vezes, também com alguns tubarões, é verdade. Mas nem tudo foi banal, nesses dias que por ali passei. Pernoitar no deserto, sob as estrelas, com momentos rituais de absoluto silêncio, bem como visitar o curioso mosteiro de Santa Catarina, na base do Monte Sinai, que eram trajetos obrigatórios para quem ia a Sharm el-Sheikh, foram momentos únicos. Recordarei para sempre uma conversa com um padre espanhol do mosteiro, que me falou longamente da sua experiência egípcia, da vida na solidão daquele deserto, e de como isso o tinha feito olhar o conceito do tempo com outros olhos. A segurança, ao que parece, impede hoje fazer essas viagens pelo deserto, a exemplo do que também se passa agora no nordeste do Sinai, um deserto onde já não é possível fazer o interessante percurso, atravessando o Suez, entre o Cairo e Al Arish, uma magnífica praia, com hotéis bastante "délabrés", não muito longe da fronteira de Rafah, perto do acesso egípcio à faixa de Gaza. Numa das noites de Sharm el-Sheikh, depois de um jantar, resolvi fazer um percurso exploratório pelo hotel onde decorria a conferência e estava hospedado, um imenso espaço desenhado em forma de crescente. Andei pelos jardins e, em certo momento desse passeio, deparei com um local que me pareceu ser um bar. Dele emanava boa música, gente com um ar de turistas, divertidos e ruidosos, com algumas mulheres muito bonitas. Entrei e dirigi-me ao balcão a pedi uma bebida. Notei que alguns dos circunstantes, eles e elas, me olhavam com alguma curiosidade. A barwoman que me serviu, que notei que era tudo menos egípcia, perguntou a minha nacionalidade. Satisfeita a curiosidade, explicou-me que, embora me pudesse servir um copo, aquele era "um bar para russos". Ela também o era e, de facto, foi nesse momento que notei que, à volta, tudo estava escrito em cirílico. Quase de certeza, a única pessoa não-russa que por ali parava era eu. Fora a estranheza pela minha inusitada presença, nada de particular se passou. Acabei de beber calmamente o meu whisky e zarpei para o "meu" lado do hotel, com registo de memória desse instante curioso. É que, por esses dias, eu havia-me esquecido de que Sharm el-Sheikh, desde o fim da União Soviética, se tinha transformado num local muito popular de férias para os russos de classe média (os que têm mais dinheiro vão para destinos mais glamorosos). Havia por ali vários hotéis praticamente "só para russos" e, naquele em que eu estava hospedado, havia alas que lhes eram totalmente destinadas. Eu é que me perdera por lá, por engano. Agora, com as sanções financeiras a limitar os seus movimentos, os cartões de crédito cancelados, as férias em risco e as consequências da guerra prestes a fazerem sentir-se de forma muito pronunciada na vida das classes médias do país, os turistas russos devem ter abandonado Sharm el-Sheikh. E como a sanções têm um inevitável efeito “boomerang”, a economia e o turismo egípcios irão sofrer com isso. Nada de bom sai de uma guerra. |