Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


20-10-2021

RAIA–O POÇO DO DESESPERO (Terceira e última parte- capítulos V e VI)


    V

 

Eram dez horas da manhã quando Mónica acabou de ler o último capítulo do livro "The red letters:My father's enchanted period" de Ved Mehta, o famoso escritor indiano invisual, estabelecido em Nova Iorque. Era sábado, e como Dominic estava em casa, pediu-lhe para a acompanhar até ao poço. Antes de regressar ao Canadá, queria fazer umas investigações particulares, porque achava o caso da Regina muito intrigante. A custo, o seu primo Dominic acompanhou-a até a "banda". O jeep Mahindra foi arrumado no mesmo local para não incomodar o escasso trânsito que pontualmente perturbava aquela área. O Sol já ia bem alto, o calor sufocava e nenhuma aragem se fazia sentir, e desta vez os trabalhadores labutavam ao lado dos búfalos negros que rasgavam a terra. Mais adiante um trator, propriedade de uma família abastada ou da comunidade, soltando ruídos ensurdecedores, fazia constantes vaivéns. Mónica disparou uma pergunta ao primo, querendo saber se acreditava em fantasmas, a que ele respondeu negativamente. Ela concordou, acrescentando que seria imaginação do povo, tal como acontecia com os índios canadianos férteis em contos fantásticos, que iam de Manitú aos lobisomens. Os dois notaram que o poço estava, aparentemente, a ser evitado pelos camponeses que se mantinham afastados a uma distância razoável. O drama ocorrera ao pôr-do-sol quando o local estava mais ou menos deserto. Por sugestão da Mónica, os dois caminharam para a casa mais próxima e foram atendidos por uma velha senhora de nome Zebel…a Zebel Mauxi (tia Isabel) que recolhia folhas secas do cajueiro, tombadas e dispersas no chão vermelho poeirento. Ela, com um ar muito triste, contou que naquela noite tivera um pesadelo. Viu uma águia gigante lançar-se sobre a sua neta de dez meses que estava deitada numa esteira estendida à sombra do cajueiro e ela correndo como uma louca, num gesto protetor, cobriu-a com o seu corpo e depois carregou-a nos braços e refugiou-se no interior da sua casa. Contudo, o animal aparecia, agora, refletido no espelho do armário. Despertou estremunhada e ficou a pensar no que iria acontecer durante o dia. Deveriam ser umas seis horas de manhã quando ouviu uma gritaria e viu muita gente a correr. Uma das pessoas contou-lhe que o corpo de uma menina, que não parecia ser do bairro, estava a boiar no poço. Horas depois de o cadáver ter sido recolhido, a polícia localizou a sua família em Navelim. A pobre viera de longe para pôr fim a sua vida. A idosa relacionou o pesadelo com o suicídio, agora patenteado.

Mónica agradeceu a Zebel Mauxi pelas informações prestadas e os dois regressaram ao local. Ela olhando em redor, verificou que as plantas sensitivas agora cobriam densamente as duas bermas da “banda”, acompanhando as duas filas de coqueiros. Conversando deram uns passos e pararam a uns 10 metros do poço. Mónica confessou ao primo Dominic que gostaria de levar aquela planta para o Canadá mas que duvidava da sua sobrevivência naquele clima tão rigoroso que atingia temperaturas negativas. Inclinou-se para as tocar com as chaves, mas…elas como que por magia fecharam-se. Ela nem sequer lhes tinha tocado! Que se passaria? Agora era outro grupo de folhas que se fechavam…e outro…e outro…até formar uma mancha que se foi alastrando até ao poço. Os primos não queriam acreditar no que viam. As plantas sensitivas foram, aparentemente, varridas por uma mão invisível do ponto onde se encontravam até ao poço! Elas, literalmente, “apagaram-se” de forma gradual dos pés da Mónica até ao poço, formando uma mancha de faixa acinzentada contrastando com o verde à sua volta. Imagine-se um barco invisível sulcando por sobre as águas calmas de um lago, deixando atrás de si um rasto bem visível. Foi isso que os dois viram! Uma onda de cor de cinza correu em direção ao poço! Mónica manteve-se calma enquanto Dominic gritava: - «Vamos embora daqui, já!».

Assumindo o controlo da situação, Mónica avançou para o poço e chegou a tempo de observar círculos concêntricos à superfície da água, que partiam do centro como se alguém tivesse lançado uma pequena pedra. Não estava apavorada porque eram 11.30 de manhã, estava acompanhada e havia gente no campo. Teria uma pequena cobra de água rastejado por debaixo das plantas e ter-se-ia lançado ao poço? Enquanto tentava perceber com frieza o inesperado fenómeno, uma folha de papel despertou a sua atenção. Estava coberta com um nenúfar ressequido. Apanhou-a e caminhou para o jeep onde o primo, apavorado, a esperava. Era uma folha pautada com um texto escrito à tinta ocupando sete linhas e quase sumido. Estava redigido em inglês e só se conseguia ler algumas palavras: “ (myself) (unhappy) (mother’s gold) (mistake) (Camilo) (f # rever) (Regin#). (eu própria...infeliz…ouro da mãe...erro...Camilo...para s#mpre...Regin#)”.O orvalho tinha apagado a letra “a” da palavra Regina.

Mónica pediu ao primo que repetisse o nome da falecida. Dominic com voz trémula recordou-lhe: «-Regina Dourado.». Fez-se um longo silêncio que foi quebrado por Mónica num perfeito inglês com sotaque americano: - «Tanta gente que esteve aqui, polícias, familiares, amigos, curiosos e trabalhadores, e ninguém reparou neste papel? Quem será este Camilo? Ela menciona o ouro da mãe, porque será? Vamos entregar esta preciosidade à polícia.».

Aqueles que trabalhavam no campo não deram conta do alvoroço que reinava mais acima.

 

                                                        VI

Aeroporto de Frankfurt às 08.30 horas. Mónica dentro de 50 minutos irá embarcar para o Canadá. Sentada no espaço reservado para os passageiros em trânsito recompunha-se do voo Mumbay-Frankfurt e dali observava o "Travel Value & Duty Free", onde, minutos antes, adquirira algumas lembranças para os pais. Como sempre, reinava uma grande azáfama naquele aeroporto titânico da Alemanha. Estava muito cansada, e mais uma vez veio-lhe à memória o caso do poço da Raia. Assim que entregou a carta da infeliz estudante à polícia, o inspetor Narayan Naik reabriu o processo e deslindou o mistério. Não fora apenas um caso passional mas também um crime, porque o jovem Camilo, e colega da escola, sabendo da paixão da Regina por si, convenceu-a a desviar parte do ouro da sua mãe com a promessa de lho devolver mais tarde. Regina, sem conhecimento da sua mãe, retirou da caixa de joias duas pulseiras e um anel de ouro. O inspetor Naik apurou que o objetivo do Camilo, com o produto da venda do ouro, foi o de obter um passaporte português, tendo para isso de pagar uma avultada importância a dois intermediários, um em Goa e outro em Portugal. Quando Regina deu conta do erro, já era demasiado tarde e sabendo que a sua mãe, cedo ou tarde, iria dar pela falta das joias, pôs termo a sua vida. Camilo, esse agora teria de enfrentar a justiça. Mas que dizer das "lojechem okol"que se fecharam misteriosamente? Foram excitadas por uma furtiva serpente de água ou por uma misteriosa mão invisível? Mónica Antão jamais saberia. Os pais dela iriam a Índia em Maio, mês das mangas, a rainha das frutas, e saberiam certamente mais alguma coisa.

        

Pedro Mascarenhas

Publicado na revista Ecos do Oriente