16-10-2021RAIA–O POÇO DO DESESPERO(Segunda parte- capítulos III e IV) - Pedro MascarenhasIII Dois dias depois Mónica, levando como passageiros os tios e os primos, rumou à Velha Goa. Ia assistir à exposição das relíquias sagradas do Patrono de Goa, S. Francisco Xavier. Era uma manhã de segunda-feira, dia pouco concorrido, e a tia Adelina preparara um bom farnel que incluía uma garrafa-termo contendo o famoso "tea-rose" indiano que a indo-canadiana tanto apreciava e nunca se esquecia de o levar consigo, pelo menos 2 quilos, de regresso ao Canada. Depois de uma curta discussão sobre a melhor forma de atingir o destino, optou-se por evitar a taluka (distrito) de Ponda e circular por Margão, Verna, Cortalim, Agaçaim até próximo de Pilar. Daqui, por um atalho indicado por Dominic, alcançaram rapidamente Velha Goa. Arrumado a viatura no parque pago, caminharam para o cruzamento, onde cinco polícias controlavam o trânsito não permitindo qualquer circulação na avenida principal. Passaram por dezenas de tendas atulhadas de tudo, desde as refeições até ao vestuário. Resistiram ao ataque dos vendedores de velas e, finalmente, alcançaram a avenida principal. Do lado esquerdo ficava a Basílica do Bom Jesus e do lado oposto a Catedral, onde estava exposto o corpo de S. Francisco Xavier. Mónica mostrou-se muito jovial porque gostava daquele ambiente festivo que apresentava as duas faces, a religiosa e a profana. Lá estava o cunho tipicamente indiano, a religiosidade, o cruzar das pessoas de várias religiões, o vestuário diverso e garrido, as tendas do grão, bojé, sarapatel, gelebi, kalliô-bolliô, sumo de cana-de-açúcar, brinquedos, calçado, etc. Como a missa só começaria às 15.00 horas, aproveitaram o tempo para tributarem veneração ao Santo. Desta vez, os fiéis em fila, estavam protegidos do sol pelo teto da faixa de lona colorida que serpenteava até a entrada lateral da Catedral. No interior, dois leigos esforçavam-se para que os fiéis não perdessem muito tempo junto da redoma de vidro com o Santo, a fim de que outras pessoas também pudessem avançar. Os jornais de Goa previam uma afluência de largos milhares de pessoas até ao encerramento da exposição. Mónica constatou a presença de alguns turistas europeus, da Alemanha e Grã-Bretanha, principalmente e, até da Rússia. A religiosidade destes naturalmente seria fraca ou nula, estavam lá como turistas e nada mais. Ela conhecia bem o Canadá e a vida material da grande maioria dos seus habitantes. Achava-os vazios por dentro, obcecados pelo dinheiro e sucesso. Muitos dos seus colegas da Universidade viram as suas vidas familiares terminadas em divórcios litigiosos. Mónica que, em termos de cultura adquirida, oscilava entre o Canadá e a Índia, aderia aos seus aspetos positivos. Assim, por um lado, apreciava o rigor e a disciplina do mundo anglo-saxónico, e por outro lado, a religiosidade e a serenidade do mundo indiano. Recordava-se da frase da sua grande heroína, a Madre Teresa de Calcutá: «- Os pobres da Índia eram mais felizes do que os pobres do Ocidente, porque eram crentes e tinham uma Fé e isso queria dizer Esperança.». A vida não se resume apenas a bens materiais. Que o diga o seu amigo canadiano Carl Olensonn, descendente de nórdicos, cujo casamento terminou mal, lançando os dois filhos para o mundo de droga. Teve tudo para ser feliz. É vice-presidente de uma importante empresa canadiana com ramificações nos Estados Unidos, Europa e Japão. A ex-esposa era advogada, e os dois filhos eram adoráveis mas o vazio familiar tecera a sua trama. Hoje Carl era um homem destroçado por dentro, embora exteriormente exalasse sucesso por causa do seu Ferrari, da gravata de seda, do fato de boa qualidade, da vivenda e de outros sinais exteriores de riqueza. Na sociedade moderna, se a Fé não estiver edificada sobre rocha firme, tudo se perde. Durante a missa a indo-canadiana não conseguia esquecer o drama do poço da Raia. Será que o problema que tinha atormentado Regina Dourado teria sido somente passional? Ou haveria um segredo inacessível? Rezou pela sua alma para que Deus lhe desse o eterno descanso, já que neste mundo ninguém a tinha auxiliado.
IV A tia Adelina não visitava a capital todos os dias e com a vantagem de se hospedar no luxuoso apartamento da sobrinha em Miramar. Os restantes familiares não a acompanharam devido a outros afazeres e aqui o luxo e o movimento de viaturas no exterior contrastavam com a paz na sua velha casa rústica. Aqui todas as comodidades eram tangíveis mas faltava o calor humano. Raia era rica em arvoredo e contatos afáveis com familiares e vizinhos à toda a hora. Ela tinha completado 80 anos mas ainda se sentia forte e ativa no seu dia-a-dia e por isso aceitou o convite para assistir a um dos espetáculos programados pelos organizadores do IFFI (Festival Internacional do Cinema Indiano). Como acontece em qualquer canto do mundo, a ideia do IFFI foi apoiada por uns e combatida por outros, mas o projeto foi avante e depois da sua inauguração foi um sucesso. Ela estava ansiosa por ver o filme "Aleesha" do diretor Rajendra Talak, falado em konkani, já que não ia ao cinema desde a estreia do filme "A paixão de Cristo". Mónica fazia questão em levar a tia a todos os sítios. O restaurante Rio-Rico do hotel Mandovi teria sido uma coisa completamente obscura para ela se não tivesse ido almoçar lá. Aquele velho hotel de Panaji ainda resistia aos ventos do desenvolvimento que varria Goa. Notou grandes mudanças no Altinho desde que passeara por esse bairro há uns anos atrás. Gostou do mercado pela sua arrumação quando comparou com o velho do Margão, (o novo, junto do terminal rodoviário de Kadamba era grandioso e superava o da capital). Os turistas acotovelavam-se no miradouro de Dona Paula, ora beneficiado. O Palácio de Hidalkhan que abrigava o velho Secretariado até há pouco tempo ia, segundo parece, ser transformado num museu. Mas a transformação mais espetacular ficava para os lados do Miramar com as suas largas dezenas de novas habitações com traços de arquitetura ocidental ao longo da marginal onde Mónica tinha comprado o seu apartamento. Naquela área a Natureza tinha recuado e cedido lugar ao betão. Panaji entrou no novo ciclo de desenvolvimento tornando-a sofisticada com cambiantes e caracterizações sem precedentes. Os trabalhadores oriundos dos estados de Maharashtra, Kerala, e sobretudo Karnataka, eram as verdadeiras formigas que em larga escala contribuíam para sua mudança. Também o Canadá e o seu poderoso vizinho, os Estados Unidos (dois dos sete mais ricos do mundo) devem muito aos emigrantes, pois foi a mão-de-obra barata depois da II Guerra Mundial que possibilitou a sua grandeza. A globalização (primeiro interestadual e mais tarde internacional) permitiu que a Índia atingisse 8% a 9% de crescimento económico nos últimos anos. Canadá e Índia são membros da Commonwealth e as relações foram sempre excelentes. ( Continua e termina ) Pedro Mascarenhas 02/03/2008 Publicado na revista Ecos do Oriente |