Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


03-03-2022

O URSO RUSSO/ OPINIÃO por João Melo/ DN


por João Melo/ DN Inline image

A não ser que os leitores fossem doidos ou, então, tivessem um plano secreto qualquer, iriam provocar um urso? A insistência do Ocidente, comandado pelos EUA e sob a subserviência da Europa, em acenar com a possibilidade de integração da Ucrânia na NATO é - negue-o quem quiser enganar os incautos - uma provocação.

O que espera o Ocidente ganhar com isso? Terá sido apenas um ato de estupidez ou uma manifestação de arrogância? Difícil acreditar. Ou foi uma armadilha? Temos de aguardar pelo desfecho e pelas consequências da invasão russa da Ucrânia para sabê-lo.

Depois de oito anos à espera do cumprimento estrito dos acordos de Minsky e sem ter recebido nenhuma resposta da NATO e dos seus países membros à questão colocada frontalmente pelo seu líder - essa organização pretende ou não estender-se até à fronteira ucraniano-russa? -, a Rússia, vendo-se sem saída, reagiu como era expectável.

Arguir agora que se tratou de uma surpresa é, literalmente, conversa para boi dormir. O Ocidente sabia perfeitamente que essa seria a resposta russa, tanto que andou a anunciá-la dias a fio, nas semanas anteriores ao início de mais uma guerra na Europa.

A formidável barragem mediática posta em ação pelo Ocidente tenta reduzir a análise de mais esta tragédia a uma mera discussão moral ou ideológica.

Salvo exceções - algumas inesperadas e corajosas -, o comentariado de plantão quer convencer a opinião pública de que a Rússia invadiu a Ucrânia apenas por não querer a seu lado um país democrático. Mais do que patética, essa argumentação é inqualificável. Para dar apenas um exemplo, a Rússia convive tranquilamente com a Finlândia, com a qual tem uma fronteira de 1340 quilómetros.

Não tenho dúvidas de que, do ponto de vista político, a Rússia é uma autocracia. No plano económico, é tão capitalista como o chamado Ocidente, encontrando-se apenas numa fase desse modelo económico-social pela qual todos os países capitalistas hoje desenvolvidos passaram (o capitalismo "primitivo" ou "selvagem").

Pessoalmente, e autodefinindo-me a como um socialista liberal (política e moralmente liberal e defensor, no plano económico e social, de um modelo baseado nos interesses dos mais pobres e na justiça social) não me revejo, em absoluto, na Rússia de Putin. Mas "democrata", a Ucrânia? Poupem-me.

O atual regime de Kiev é o prolongamento do golpe de Estado neonazi e antirrusso que, em 2014, derrubou, com o ostensivo apoio do Ocidente, o presidente eleito quatro anos antes, Viktor Yanokovitch, cujas relações com a Rússia eram absolutamente pacíficas.

Em 2019, foi eleito o atual presidente, Volodymyr Zelensky, um comediante que se dizia antissistema e que conta com o apoio da direita radical e da extrema-direita ucraniana, de pendor neonazi. Aliás, uma das unidades militares ucranianas de elite, designada Azov, é assumidamente nazi.

Há dois anos, a insuspeita Freedom House escreveu: "A direita radical/neonazista representa agora um elemento sofisticado e politicamente influente na sociedade ucraniana." Sobre a natureza "democrática" do regime ucraniano estamos, pois, entendidos.

Por outro lado, e como intelectual africano, não posso também deixar passar em branco (sem trocadilhos), as notícias de que as forças policiais e militares ucranianas têm impedido os negros residentes no país, a maioria estudantes, de atravessarem a fronteira com a Polónia, em busca de refúgio.

Para terminar, diga-se, portanto, que o que está em jogo na Ucrânia é uma questão fulcral para os russos, que já vem desde os tempos do Império: segurança.

De acordo com a informação publicamente disponível, há poucas ou nenhumas dúvidas de que o Ocidente pisoteou todos os entendimentos alcançados com a Rússia depois do fim da União Soviética. Os próximos tempos dirão se foi arrogância ou armadilha, para consolidar o unilateralismo que se seguiu ao mundo bipolar derrubado com o Muro de Berlim.

 

Escritor e jornalista angolano, diretor da revista África 21

https://www.dn.pt/opiniao/o-urso-russo-14634328.html