Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


10-09-2021

O lugar das bibliotecas - Zélia Parreira


Zélia Parreira *

A história das Bibliotecas Públicas em Portugal nas últimas décadas é conhecida de todos. Há apenas 30 e poucos anos, no princípio da década de 80, o cenário era desolador.

As bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian, que durante décadas asseguraram o serviço de leitura pública em Portugal, estavam a viver os seus últimos dias e os bibliotecários eram pessoas envelhecidas pelo silêncio obscuro das salas. Nas bibliotecas itinerantes, o ar livre e a sensação de venda ambulante conferiam uma dinâmica diferente que deixou marcas nostálgicas em todos os que as utilizaram.

O grupo de trabalho, que em meados da década de 80, fez o diagnóstico da situação não foi brando. Corajosamente, identificou problemas e lacunas e lançou as bases de trabalho para a construção de um projecto de rede bem estruturado.

A rede arrancou em 1987, com cinco concelhos pioneiros, entre os quais estava curiosamente Moura, onde trabalhei durante 19 anos. Quase 30 anos mais tarde, cerca de 200 concelhos foram beneficiados com a construção de uma nova biblioteca, um edifício novo, arrojado e transparente que prometia o acesso ao conhecimento, à informação e ao lazer a todos os que dela quisessem usufruir. (Não foi o caso de Moura, cuja obra foi sendo arrastada até à paragem total o que faz dela, ainda hoje, uma BD – Biblioteca em Desenvolvimento.)

As novas bibliotecas tinham – e têm – tipologias, em conformidade com a sua dimensão física, que por sua vez depende da densidade populacional. Aos municípios cabia o financiamento das unidades e a tutela directa. À administração central, cabia a formulação da rede e a sua orientação. Vestidas com uma nova roupagem, elegante e atractiva, as novas Bibliotecas foram apetrechadas com mobiliário recomendado e certificado e dotadas de funcionários qualificados cumprindo os mínimos estabelecidos pelas recomendações internacionais.

Este novo paradigma teve eco no sector da formação em ciências documentais, fazendo disparar o número de cursos disponíveis com todas as variantes de designação e estrutura curricular que possamos imaginar.

Aparentemente, estavam reunidas todas as condições para um modelo de funcionamento exemplar, que chegou a merecer o interesse internacional pela forma como havia sido planeado, calculado e executado.

Mas…

Há relativamente pouco tempo, no programa de rádio mais ouvido em Portugal – as Manhãs da Comercial – um locutor que é também o director dessa rádio, ela própria líder de audiências, disse aos microfones para quem o quis ouvir que “já ninguém vai a bibliotecas, que podemos encontrar a informação de forma muito mais fácil na Internet e que as bibliotecas são sítios fora de moda”. Não sei o que vos parece, mas a mim isto soa como um claro e inequívoco grito de “O rei vai nu”. Esta observação infeliz e – sim, todos o sabemos – infundada, não é única. É possível ouvi-la no nosso dia-a-dia, no contacto com os utilizadores e sobretudo, com os não-utilizadores que continuam sem perceber que benefício lhes pode trazer uma biblioteca.

As novas vestes das Bibliotecas que prometiam sangue novo e amanhãs que cantam não foram suficientes.

Algures, no percurso, deixámo-nos ficar.

Perdemos o norte, o sentido de caminho.

Trinta anos depois, um novo diagnóstico é urgente e peca por tardio. Um novo rumo precisa de ser traçado.

A fase da construção, dos projectos de arquitectura e das BMs 1, 2 e 3 já acabou. A biblioteca que quer ser o centro da comunidade não pode continuar fechada sobre si em edifícios megalómanos com custos de manutenção incomportáveis ou que nem chegam a ser utilizados, como é o caso do Alandroal.

Permitam-me uma síntese necessariamente genérica e abrangente.


A rede

A rede não existe. A um conjunto de pontos num mapa não se pode chamar rede, porque falta o elemento essencial: as ligações. Cada um de nós continua a marchar alegremente num exército onde só há meia-dúzia de soldados. E ainda há uma situação mais peculiar: as bibliotecas que são públicas mas que não fazem parte da rede. Porquê? Porque não pediram financiamento? Porque não cumprem os parâmetros estabelecidos? E quantas das bibliotecas da rede ainda cumprem parâmetros?

O estabelecimento de laços de cooperação é urgente e necessário. Não é fruto do acaso que a “Boa Prática” escolhida para ser premiada hoje seja justamente um projecto de colaboração, partilha de recursos e trabalho em conjunto. Pessoalmente, acredito que a melhor forma de colocar a Rede Nacional em prática é a formação de pequenas redes que se interligarão entre si.

Para que este processo se concretize é necessário vencer dois obstáculos:

  1. A tutela municipal, a quem tem de ser demonstrada a viabilidade e vantagem do trabalho colaborativo;
  2. A insegurança dos bibliotecários que temem ver os seus domínios invadidos por colegas que formularão juízos de valor sobre o seu trabalho.

Por outro lado, a tutela tem que dispor de:

  1. Meios de acção para acompanhamento efectivo, no terreno, das bibliotecas e destas “mini-redes”.
  2. Capacidade de produção, mas também de aplicação e acompanhamento, de guidelines, orientações e recomendações que resultem da produção internacional, designadamente via IFLA, mas também do diagnóstico resultante do trabalho de campo e das necessidades manifestadas pelas bibliotecas e pelos seus bibliotecários.


Serviços prestados

Os serviços prestados deveriam ser um reflexo claro da missão da biblioteca pública. Mas a missão necessita de redefinir estratégias, claramente desactualizadas face à revolução tecnológica e ao impacto que esta teve e tem na nossa área de actuação. A verdade é que ninguém sabe muito bem o que vai fazer a seguir, em contraste com aqueles dias claros e limpos do princípio da rede em que fizemos apenas o mais difícil: criar bibliotecas. Enquanto alguns apostam decididamente nas novas tecnologias, novos suportes e novos formatos de leitura, outros dedicam-se ao crochet e ao patchwork, quase transformando as suas bibliotecas em centros de dia. Afinal de contas, os políticos precisam de estatísticas e o que conta, aparentemente, é ter a casa cheia, mesmo que ninguém toque num livro, debata uma ideia ou usufrua de uma manifestação cultural.

A este nível, é necessária a definição de uma carta de princípios para as bibliotecas públicas. É óbvio que cada biblioteca/bibliotecário deve ter liberdade de actuação para gerir a dinâmica da sua biblioteca, mas a definição de serviços e prioridades pode ajudar, especialmente se considerarmos a realidade de uma rede e de um esforço conjunto e concertado. Ajuda se remarmos todos na mesma direcção, no que aos serviços considerados básicos e essenciais diz respeito.

(Que esta recomendação não seja entendida como uma tentativa de limitar a criatividade ou impor a censura.)

Este é o mote para o funcionamento da rede nos próximos tempos: Criar, articular, disponibilizar serviços, mais-valias.

Formação e situação profissional.

Poucos bibliotecários fazem trabalho técnico. É suposto que alguém o faça, embora não se saiba muito bem quem, porque a explosão formativa deu origem a cursos sobre tudo onde não se aprende nada. Somos convidados a pensar fora da caixa, a estar à frente do nosso tempo e entretanto deixamos sem resposta os leitores deste tempo, do aqui e do agora.

Falamos de um segmento altamente especializado que foi ignorado pela reestruturação da administração pública, com as consequências esperadas na admissão à carreira. Bem prega Frei Tomás, corporizado na BAD e na DGLAB, recomendando a aplicação de critérios para a selecção de recursos humanos. A moldura legal é permissiva e aproveitada em muitas circunstâncias.

A avaliação da oferta formativa no ensino superior já está a concretizar uma primeira selecção. Para já, estão a ser eliminados os cursos cujo currículo resultava da mera soma de disciplinas para as quais havia docentes disponíveis, quando o desejável seria uma estrutura coerente, elaborada sob a perspectiva da realidade que os profissionais vão enfrentar nas suas bibliotecas e que inclui os saberes biblioteconómicos aliados ao desafio de uma sociedade em mudança. Acima de tudo, a oferta formativa tem que ser séria e credível e não pode ser formulada apenas com os pareceres e opiniões de investigadores que nunca viveram um dia de trabalho numa biblioteca, pese embora todo o respeito que a comunidade académica nos merece.

Urge também dar formação certificada e credível aos muitos profissionais que em tantas bibliotecas espalhadas pelo nosso país, exercem funções para as quais não foram preparados. São funcionários administrativos, por exemplo, que pelas mais diversas razões foram colocados em bibliotecas. A qualidade de trabalho de alguns é muitas vezes superior à de muitos diplomados, mas sem a correspondente certificação, de nada lhes serve.

Por fim, importa definir o papel do bibliotecário. Até agora é um técnico superior entre técnicos superiores. Ganha o mesmo, tem a mesma categoria indiferenciada e uma responsabilidade que lhe é atribuída de forma oficiosa e que normalmente só é evocada quando as coisas correm mal.

Embora a perspectiva de um suplemento no vencimento seja muito agradável e absolutamente razoável, creio que é imprescindível que exista pelo menos uma designação oficial, um despacho de nomeação, um reconhecimento efectivo da responsabilidade que é acometida aos bibliotecários.


Ser bibliotecário

Permitam-me que vos fale sobre um tipo específico de bibliotecário que me preocupa há já alguns anos: os bibliotecários-carpideira.

Chegamos aos encontros, colóquios ou seminários e eles estão lá. Todos os conhecemos. Queixam-se constantemente por serem perseguidos por um vereador ou massacrados por um chefe de divisão. Descrevem o seu presidente da câmara como um bruto inculto que quer transformar a biblioteca em salão de festas ou algo equivalente. Alegam que ninguém os deixa comprar livros, quanto mais promover actividades ou fazer formação de aperfeiçoamento. Não participam na vida da comunidade porque não são pagos para isso. Não abrem ao sábado e muito menos à noite porque não estão autorizados a fazer trabalho extraordinário. Os utilizadores das suas bibliotecas são descritos como uns ingratos que não lhes dão valor. São umas vítimas. Uns patinhos feios. Enquanto este tipo de atitude existir, não conseguiremos vingar. De uma vez por todas temos que parar de perguntar o que podem os outros fazer por nós e decidir o que queremos para as nossas bibliotecas.

Nós somos as nossas bibliotecas. No dia-a-dia da comunidade, nos eventos culturais, nas cerimónias oficiais, nas reuniões de bairro, nós somos a Biblioteca e temos o dever de participar. A visibilidade da Biblioteca é também aquela que lhe soubermos conferir com a nossa postura e participação cívica. Para que alguém se lembre da Biblioteca como o sítio ideal para realizar determinada actividade, nós precisamos de a disponibilizar à comunidade.

A visão consagrada pelo Manifesto da UNESCO – “A Biblioteca é uma porta aberta” – deve ser concretizada e promovida pelo Bibliotecário. É verdade, não somos funcionários públicos tradicionais. Não trabalhamos das 9 às 5. Não temos a profissão de Bibliotecários. Nós SOMOS Bibliotecários e isso não é uma tarefa, é uma forma de viver a vida.

 O exemplo dado pela Comunidade Intermunicipal de Aveiro, que também já existe (pelo menos) na Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo e que espero poder um dia ajudar a germinar no Alentejo Central é o caminho mais óbvio, por ser aquele em que temos capacidade de intervenção imediata, capacidade de decisão. Agarremos estes exemplos e esta oportunidade.

Todos – tutela central e local, bibliotecários, entidades formadoras – podemos marcar a diferença e criar uma oportunidade de intervir. Não podemos continuar a esperar pela chegada de um Messias que vai transformar as nossas bibliotecas em tudo o que sempre sonhámos. O Messias tem de ser cada um de nós.

Sobretudo, não podemos continuar à espera de todos os financiamentos que julgamos merecer e sem os quais tudo nos parece impossível, sob pena de perdermos irremediavelmente não apenas a batalha das bibliotecas públicas, mas a guerra contra a ignorância e a intolerância.

* Diretora da Biblioteca Pública de Évora

[Texto apresentado nas Conferências Polícias Culturas Sectoriais: “Política do Livro e das Bibliotecas” – no âmbito do Colóquio “O Lugar da Cultura” que decorreu no dia 17 de Abril de 2015 no Centro Cultural de Belém.]

Sobre o Autor

Zélia Parreira

O lugar das bibliotecas