Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


26-01-2022

Altino, um bispo de Goa entre lobos - Pedro Mascarenhas


A guerra colonial em Moçambique já se arrastava havia muito tempo e os seus efeitos faziam-se sentir junto da população europeia, sempre alheia a factos concretos. A censura do lápis azul negou-lhes o acesso à verdade relativamente ao avanço da guerrilha que em 1972 encontrava-se às portas da cidade da Beira. Por isso, a ala ultranacionalista e racista começava a dar mostras dos primeiros sintomas do nervosismo, agravados ainda mais, pelo embargo económico imposto pela ONU à vizinha Rodésia, colonia britânica, governada por Ian Smith que proclamara a sua independência de forma unilateral e ilegal (11/11/1965). O bloqueio imposto, como retaliação, pela Marinha Britânica afetou, também, pelo efeito dominó, a colónia de Moçambique. Entretanto as injustiças e os massacres dos africanos cresciam como uma bola de neve na África Austral e as conclusões do Concílio Vaticano II influenciavam os padres mais esclarecidos de Moçambique.

Anos antes, o primeiro bispo da Beira fora D. Sebastião Resende, amigo do então senador católico John Kennedy e futuro Presidente dos E.U.A. Com ajuda deste, fundara o Diário de Moçambique e demonstrara grande preocupação em relação aos africanos vítimas da exploração e racismo. Depois da sua morte ocorrida em Janeiro de 1967 foi nomeado um outro bispo, oriundo de Portugal, Manuel Ferreira Cabral.

Em Janeiro de 1972, na vigência deste bispado, durante o juramento de novos membros dos Escuteiros na paróquia de Macúti, Beira eclodiu um grave incidente. Dois padres — Fenando Marques Mendes e Joaquim Teles Sampaio — pediram que a bandeira nacional fosse retirada e exibida apenas a dos Escuteiros. Os pais dos garotos de mentalidade fascista não aceitaram essa ideia e entregaram-nos à PIDE/DGS (polícia secreta). Os sacerdotes, antes de serem presos, foram arrastados à força pelos agentes pelas esplanadas de cafés e restaurantes e exibidos como animais de circo. Alguns colonos lançaram-lhes à cara restos de café, foram insultados, cuspidos e maltratados de toda a forma. Organizaram, também, um "buzinão (ou buzinaço)" pela cidade. Foram, como Cristo, enxovalhados.

O bispo Cabral não resistiu às pressões e ao clima de ódio instalado e pediu o seu afastamento porque apercebeu-se de que não havia condições para continuar como pastor daquela diocese.

Em Maio de 1972, e, neste ambiente explosivo, D. Altino Ribeiro de Santana (natural de Goa), bispo de Sá da Bandeira (Lubango- colónia de Angola), é transferido para a cidade da Beira, Moçambique, sendo o primeiro bispo não branco, o que terá extremado, ainda mais, a situação. O seu irmão, padre Orlando, acompanha-o como seu secretário. (ver foto do bispo)

Nesse ano, encontrando-me na cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo), onde, como oficial do exército, cumpria o serviço militar obrigatório, assisti a um episódio muito significativo. Tinha ido ao cinema Gil Vicente com um amigo e antes do início do filme foi projetado um documentário noticioso com imagens de D. Altino, como sendo o novo Bispo da Beira e o público, que era maioritariamente europeu, riu-se às gargalhadas. O meu amigo perguntou-me se tinha entendido a razão da risota e eu respondi-lhe: «— Não vês que esta gente só aceita brancos como chefes porque não estão habituados a outra coisa?»

Era a mentalidade da época! Influenciada pelo apartheid da África do Sul: Uma senhora que se encontrava de baixa no hospital de Macúti (Beira) ouviu o seguinte comentário da boca de uma freira portuguesa: «— Não percebo por que motivo foi escolhido um bispo indiano quando em Portugal há muitos padres!» Na catedral da Beira os africanos só estavam autorizados a ocuparem os bancos do lado esquerdo e não podiam misturar-se com os fiéis europeus e asiáticos.(ver foto atual do interior do templo)

No 1º de Janeiro de 1973, por ser o dia mundial da Paz, um outro bispo, o da cidade de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, denunciou os massacres dos africanos em Wiriyamu, que teriam repercussões internacionais, e defendeu o direito dos povos africanos à independência. Já antes, um sacerdote inglês, o jesuíta Adrian Hastings, a BBC e The Times tinham divulgado ao mundo inteiro os excessos cometidos pelos militares. A situação extrema-se. Mais sacerdotes detidos. Missionários italianos, holandeses e espanhóis, em sinal de protesto, abandonam Moçambique (1). O Papa Paulo VI, que esteve em Bombaim (depois do caso Goa) contrariando a vontade do ditador Salazar, envia um representante para estudar a situação que se vivia na colónia, e recebe na cidade de Vaticano os líderes da Frelimo, MPLA e PAIGC. O arcebispo Custódio Alvim Pereira, nacionalista e racista, recebe mal o enviado do Papa dizendo-lhe: «— Em primeiro lugar sou português e só depois sou cristão e o Vaticano não manda aqui porque esta terra é portuguesa....Os pretos são selvagens..... (2).»

Quando, a 18 de Outubro de 1964, o Papa Paulo VI presidiu ao Congresso Eucarístico em Bombaim, Franco Nogueira, o ministro dos negócios estrangeiros de Portugal, declarara que tal visita representava um insulto a Portugal.

A partir de Fevereiro de 1973 tudo se precipita. Nessa altura, eu já tinha terminado o serviço militar e encontrava-me na Beira. Entre nós, as notícias não publicadas corriam céleres. D. Altino, agora com 57 anos, recebe telefonemas anónimos insultuosos, ameaças de morte, depois de ter prestado depoimento no tribunal a favor dos padres de Macúti. No intervalo das audiências sofre o primeiro ataque cardíaco. Certa noite fizeram explodir uma bomba no jardim do paço episcopal, onde estavam hospedados os dois padres, entretanto libertados por ordem do tribunal. Noutra noite largaram fezes humanas nas escadarias do paço. Chocado com tanta intolerância e violência D. Altino sofre o segundo colapso cardíaco e morre a 27 de Fevereiro de 1973, dez meses após a sua chegada. Durante o funeral senti-me muito triste e revoltado perante a injustiça que parecia tardar a ser reparada. Os colonos extremistas tinham-no morto! Não tinham, porém, conseguido adormecer a outra justiça, a Justiça de Deus — como diz o povo— porque estava para acontecer um verdadeiro milagre.

Eis os factos:

 — 12 de abril de 1974 (Sexta-Feira Santa). D. Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula é expulso de Moçambique depois de alguns colonos, com o apoio da PIDE/DGS, terem apedrejado a Catedral, o centro catequético, a missão de S. Pedro e o Paço Episcopal de Nampula. Reflexo da luta surda entre o arcebispo Alvim Pereira, "nacionalista" de um lado e o bispo Vieira Pinto "discípulo de Cristo", do outro?

 — 25 de abril de 1974 ( 13 dias depois). Golpe de estado militar em Lisboa, que marca o fim do império colonial.

 — Início de 1975. D. Manuel Pinto regressa à Moçambique a pedido de Samora Machel. Ele regressa e os colonos deixam a colónia!  

A revista portuguesa Visão no seu nº de 20/06/2002 na página 15 relata um episódio curioso (3). D. Manuel tinha chegado à Nampula no ano de 1967 e recebe a população portuguesa na sala do aeroporto enquanto os negros esperavam-no no exterior. Quando o Bispo pega numa criança africana e dá-lhe um beijo os portugueses deram gritos de surpresa e reprovação. 

Pedro Mascarenhas

(1) Catholicism and the Making of Politics in Central Mozambique, 1940-1986)  Eric Morier-Genoud (Professor de História de África na Queen’s University em Belfast, no Reino Unido.

(2)-Declaração registada pela TV portuguesa na longa série " RTP Guerra colonial de Joaquim Furtado. 

 (3)- Ver anexo.

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Altino , o bispo mártir.

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Hoje, nessa catedral, os moçambicanos podem ocupar qualquer lugar sem constrangimento.