27-05-2021Fernando Gil (1937-2006) O filósofo que resistia à simplificaçãoVanessa Rato 20 de Março de 2006
O maior filósofo contemporâneo português, foi responsável pela divulgação em Portugal de muito do pensamento internacional. Colaboradores e amigos dizem que era complexo, profundo e sedutor
Dizia-se próximo da ideia do alemão Edmund Husserl, que falava do filósofo como funcionário da humanidade: alguém em consonância com problemas que não são só os seus, um criador de conceitos que se possam traduzir em saber como ser responsável. Dizia também que "para se perceber o mínimo sobre o mínimo seria preciso conhecer-se tudo" e que "a pluridisciplinaridade é a única metodologia possível para se perceber seja o que for".
Fernando Gil, "o filósofo português mais importante da segunda metade do século XX", nas palavras do investigador Manuel Villaverde Cabral, morreu ontem em Paris com um cancro. Tinha feito 69 anos a 3 de Fevereiro.
Era "um homem de envergadura invulgar", e "de convicções inabaláveis" uma "pessoa silenciosa, que gostava de ficar na posição de observador" e "a quem devemos parte da abertura de Portugal ao pensamento contemporâneo", acrescentou Villaverde Cabral, falando do amigo que acompanhou numa viagem a Moçambique e a quem dedicou um livro.
Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique em 1992, Prémio Pessoa em 1993, consultor do ministro da Ciência e Tecnologia, José Mariano Gago, e conselheiro especial de Mário Soares nos seus dois mandatos como Presidente da República, Fernando Gil vivia em França desde 1961. Militante contra o regime de Salazar, exilou-se depois de se formar em Direito na Universidade de Lisboa não voltando ao país durante 13 anos.
Social-democrata convicto, reencontrar-se-ia com o país através da linha política do PS de Soares, apesar de já este ano ter feito parte da comissão de honra da candidatura de Cavaco Silva à presidência.
Foi na Sorbonne que se doutorou em Lógica, começando a ensinar em 1972 no Departamento de Psicanálise da Universidade de Vincennes. Nesse mesmo ano publica a tese orientada por Suzanne Bachelard que se tornaria na sua primeira obra de referência: La Logique du Nom (antes houve apenas Aproximação Antropológica, que escreveu no fim do curso de Direito).
Camões e o Renascimento Mimésis e Negação, Prémio Pen Club em 1984, Mediações, Modos da Evidência, Tratado da Evidência e Provas são algumas das suas obras mais conhecidas, a par de Viagens do Olhar - Retrospecção, Visão e Profecia do Renascimento Português, um conjunto de ensaios que escreveu com Helder Macedo sobre autores como Camões, Fernão Lopes, Bernardim Ribeiro ou Sá de Miranda, que receberia também o Pen Club (1998), pelo olhar renovador sobre a Cultura portuguesa.
O seu livro A Quatro Mãos, sobre o seu compositor preferido, Robert Schumann, foi escrito em parceria com o musicólogo e secretário de Estado da Cultura, Mário Vieira de Carvalho.
Para Vieira de Carvalho, a morte de Fernando Gil representa "a perda de um amigo". "É insubstituível, o diálogo que desde há anos tinha o privilégio de manter com ele. Diálogo que a tudo se estendia e que, em tudo, era para mim iluminante", acrescenta. "Um dos laços que mais fortemente nos unia era a música, que ele conhecia como ninguém, que ele vivia intensamente e sobre a qual brilhantemente dissertava. As oportunidades que tive de colaborar com ele em projectos científicos interdisciplinares - pelos quais tanto se batia - foram das mais gratificantes do meu percurso académico."
Mas Fernando Gil foi também um dos fundadores do Gabinete de Filosofia do Conhecimento, da Biblioteca Nacional, e responsável pela divulgação em Portugal de muito do pensamento contemporâneo, nomeadamente através da revista Análise, que fundou em 1984, da organização de infindáveis encontros e da tradução para português de autores como Karl Jaspers, Romano Guardini, Cesare Pavese e Merleau-Ponty.
Irmão do também filósofo José Gil - o autor do inesperado sucesso de vendas Portugal Hoje: O Medo de Existir -, Fernando Gil nasceu em Muecate, Moçambique, em 1937, e estudou Sociologia numa breve passagem por Joanesburgo, África do Sul, antes de chegar a Portugal.
Em França foi ainda professor de Teoria da Literatura, tendo a seguir trabalhado para a OCDE na área de Ciências da Educação. Era professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Com um pensamento fundamentalmente voltado para as questões da epistemologia, para ele a Filosofia tinha a ver "com aquilo a que os antigos chamavam uma arte de morrer": "Algo que tem a ver com a libertação."
Havia nele, diz o amigo e colaborador Villaverde Cabral, "uma grande abragência e profundidade": "A sua obra não tem nada de divulgativo - tudo é feito em grande profundidade", diz.
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