Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


13-11-2021

Entrevista à nostalgia – Palavras no branco EDUARDO BETTENCOURT PINTO



 «Tinha onze anos quando vim aqui pela primeira vez com amigas da escola» disse E. «Viviam nesta ilha. Falavam-me muito de Taco, um cavalo branco, velho e dócil.»

Saíram a correr do ferry. Os cavalos estavam mesmo ali, do lado esquerdo quem sai, num descampado verde. Pastavam com o mar pela frente, descontraídos e livres. Hoje há ali uma marina, barreira alta de mastros quebrando a paisagem, outrora aberta.                                                                                                           

«Impressionou-me muito a beleza de Taco, o porte altivo e sereno. Intimidou-me, claro. Toquei nele um pouco assustada mas ele não reagiu. Sacudiu a cabeça. Não foi pelo meu contacto mas para afastar uma mosca na orelha. Gostei logo dele. Apesar de Taco ser manso, receei montá-lo. Mas um coro de vozes incentivou-me e acabei por fechar os olhos ao medo. As minhas amigas ajudaram-me – fizeram um degrau com a palma das mãos e os dedos entrelaçados. Apoiei o pé direito e, num impulso,  achei-me no topo do mundo. Ele não se mexeu, como se compreendesse o que se estava a passar. As minhas mãos tremiam muito quando segurei as rédeas. Depois fui ganhando confiança. Para Taco, um possante cavalo, eu não seria mais pesada do que um beija-flor.»                                                                              

Cinco ou seis cavalos andavam soltos pela ilha. O dono, um fazendeiro do interior da província de British Columbia não podia mantê-los. Então trouxe-os para cá. Poderiam sobreviver à solta. O clima, ameno no longo e frio inverno canadiano, era mais tolerável e a erva abundante. O fazendeiro soltou-os seguro de que não enfrentariam dificuldades em sobreviver.

 «Quarenta e quatro anos depois, falar neste episódio parece-me uma fábula. A ilha não é a mesma. Não cresceu para o mar nem a erosão a diminuiu.  Ocupou-se. Naquele tempo, uma família da classe média podia comprar casa nesta ilha. Hoje não. Como em todos os lugares aprazíveis ao espírito e à vista, habitação aqui só está ao alcance da classe endinheirada.»

Há um mapa muito definido nas suas palavras e nele avoluma-se o espaço da nostalgia. O mundo é uma casa que habitamos dentro de nós.

Acrescenta E:

«Gostava daquele tempo. Era mais são. A liberdade que tínhamos nessa altura seria impensável hoje.  A inocência dura muito pouco na vida das pessoas na era da internet. O conhecimento do mal propaga-se vertiginosamente.  A suspeita e o protagonismo. A desertificação social começa no ecrã de um telemóvel. Quando se constroem casas onde havia árvores derruba-se o passado para redesenharmos a vida com cimento. Neste local onde andámos, eu e Taco, a vista está agora ocupada com barcos ancorados. Só reconheço aquele tempo nos pedaços de memória que vou reconstruindo como a uma casa em ruínas.»

A neblina cobre os montes. Há uma beleza surda e triste na cor das árvores. Não tarda o inverno. O ar húmido da tarde avança, lânguido, até nós. Chove intermitentemente. Os meteorologistas anunciam temporal – ventos fortes e precipitação forte.

A galeria de arte e a biblioteca estão abertas. Abre-se a porta e recebe-nos uma agradável sensação de calor. Cresce dos livros um silêncio intemporal. Reparo, através das janelas amplas e húmidas, a longa fila de automóveis para o ferry.

A luz florescente do teto incendia de branco os cabelos de E. Saímos meia hora depois.

Um carro passa e ainda oiço estas palavras de E antes de atravessarmos a rua:

«Volto sempre a esta ilha para compreender a história de outros dias. O mundo era outro e as meninas andavam de cavalo mesmo sob a fosforescente mornidão das chuvas. Hoje a liberdade é um slogan. Podemos barafustar mas a verdade é que ninguém nos ouve. Vamos empobrecendo literalmente. Há um riso cínico no reflexo ambíguo destes tempos. E esse não se esconde por detrás das máscaras do COVID. É mais sinistro e subtil – está ao nosso lado e não o vemos.»                                                                                                     

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