03-11-2021DEMOCRACIAS ARMADILHADAS, CRÓNICA 179 - J C ChrystelloEnquanto o país mergulha em nova, desnecessária e egoísta crise, com os partidos a tomarem conta dos seus interesses na porfia de manterem o poder, esquecendo a res publica, lembrei-me deste texto de há quatro anos. Cresci na ditadura. Havia quem lhe chamasse branda, como alegadamente brandos eram os costumes do povo que a suportava. Cresci acreditando que um dia o país faria parte da Europa e do mundo, apesar de estar tão longe, que podia pertencer a outra galáxia. Lembro-me de ir a Tui comprar discos dos Beatles ou beber Coca-Cola que eram proibidas, com medo dos miasmas contagiosos de civilizações estrangeiras. Depois, veio o dia de todas as esperanças, 25 de abril. Em Timor (des)esperei, tardava (teria ido de barco?) e jamais arribou. Sempre afirmei, e não serve grande coisa, que me trouxe o mais precioso: a liberdade de expressão. O sonho da Europa unida medrou e cresceu descontroladamente, até ter mais olhos que barriga e ficar desesperadamente obesa na palhaçada que hoje é. Uma após outra, ditaduras aniquiladas e substituídas por modelos de democracia onde alegadamente o povo era representado em parlamentos. Com a queda do Muro de Berlim e a glasnost a dar lugar a uma nova Rússia todos acreditamos que sonhar era isto, até na América Latina e América do Sul. Já o neoliberalismo da nova ordem mundial tinha disseminado sementes com a Thatcher e Reagan, mas não sabíamos como ia perverter o ocidente. A democracia é uma planta muito frágil que precisa de ser adubada e regada diariamente. Nos últimos 20 anos assistimos a um retrocesso nos direitos fundamentais: igualdade, solidariedade e justiça. As democracias manipuladas criam a aparência de vontade popular através do voto universal, substituídas por autocracias dos EUA à Venezuela, sem falar daqueles onde as escolhas democráticas foram substituídas por nomeações da anónima banca, do petróleo às farmacêuticas. Isto num mundo em que a verdade é ficção e a ficção é a neoverdade. A única verdade indiscutível no jornal é a data. A liberdade é a base da vida. Hobbes disse “a liberdade desregulada inevitavelmente conduz à pior tirania.” Li em Umberto Eco, “O Cemitério de Praga”, que isto sempre aconteceu sem darmos conta. Países habituados a ser xerifes, como os EUA (depois dos decadentes impérios que duas guerras aniquilaram) inventam invasões, primaveras políticas, depondo ditadores ou democratas a seu bel-prazer. Sou um individualista nato, incapaz de viver em autocracia. Assisto, impotente, a financiamentos ilegais de campanhas eleitorais, promoção de testas de ferro, dirigentes corruptos, papagaios dos poderes económicos e capitalismo desenfreado (vendido ao mercado, dinheiro e interesses que à sua sombra se expandem e são mortalmente lesivos dos princípios democráticos). As estruturas partidárias na obsessão pelo poder, alimentam ligações e oligarquias de negociatas, reprimem o contraditório sem o debate interno (essência da democracia política). O exemplo da semidemocracia, autonómica, é visível nos Açores onde existe um parlamento regional e teórica liberdade de escolha, mas as decisões relevantes são definidas em Lisboa, ao atropelo e revelia das normas autonómicas, com cumplicidade local. O povo, que até nem é totalmente ignorante, vota com os pés (abstém-se) ou vota nos que o mantêm subsidiodependente, num ciclo vicioso: vota em mim e recebes apoios, não votas e desenrascas-te sozinho contra a burocracia que te vai aniquilar. As vozes independentes, além de poucas, são silenciadas nos meios de comunicação. Estamos na autocracia, com a manta diáfana da aparência democrática. Infelizmente, o pior está para chegar. O nacionalismo e a xenofobia sempre chegaram ao poder com o voto do povo. Dantes, os países democráticos tinham eleições, os outros não (nem as mascaradas eleições do partido único em Portugal o ocultavam). Hoje assistimos a um novo e preocupante paradigma, a semidemocracia onde existe a aparência democrática, com eleições e tudo o mais, mas onde a realidade não está representada, com resultados viciados, roubo descarado de votos e manipulação. A via autocrática travestida de democracia oca. O que temos assistido nas últimas décadas é um ataque desenfreado à democracia. São as próprias instituições europeias quem mais tem atrofiado o funcionamento dos sistemas democráticos. Mesmo eu, otimista nato, tenho dúvidas, rodeado por autómatos não-pensantes, obcecados com os ecrãs dos smartphones e impérvios aos atropelos à dignidade, equidade e justiça. Quando essa liberdade se perder, só terei de me conformar e aceitar que me implantem um ”chip” para o meu próprio bem, como nem George Orwell (1984 e o “Triunfo dos Porcos) nem Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) conseguiram imaginar. |