Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


16-09-2021

Quantos amigos cabem nas nossas vidas? Em memória de Jorge Sampaio 1939-2021 Francisco Louçã


Quantos amigos cabem nas nossas vidas? Em memória de Jorge Sampaio 1939-2021

Francisco Louçã no Expresso

Com a mais nobre das intenções, vários jornalistas e comentadores, acompanhando as despedidas a Jorge Sampaio e destacando a sua atitude cordial para com adversários, garantiram que fez amigos em todos os campos políticos. Muitas dessas pessoas foram aos Jerónimos afirmar o sentido de tal relação, e dessa sinceridade não pode haver dúvida. Um herói doce, uma presença que nunca podia ser dispensável, o que foi dito testemunha um sentido profundo de pesar. Quem lembrou que Sampaio foi o secretário-geral da RIA no levantamento estudantil de 1962, que foi o advogado que ia reunir com presos políticos em Peniche, que foi candidato pela oposição democrática em 1969, que fundou um partido de esquerda radical e que, mais tarde no PS, de que foi secretário-geral, manteve o seu empenho por uma sociedade de iguais em direitos e deveres, que começou a mudar Lisboa, que cumpriu o seu mandato presidencial com dignidade e que se dedicou incansavelmente à solidariedade humana – essas foram as vozes de quem o acompanhou. No entanto, pergunto, quanto amigos teria?

Não sei a resposta a essa questão e porventura só ele a saberia, ou os seus muito íntimos. Seriam amigos alguns dos seus adversários que foram dele despedir-se, ou até alguns dos seus aliados e correligionários? Ou os admiradores, ou os críticos, ou os que se reconciliaram depois de uma disputa? Seriam amigas as tantas pessoas que o aplaudiram no domingo pelas ruas e nos Jerónimos? Talvez se possa apresentar o sentimento desse modo, no sentido em que a maior parte do país, mesmo a grande maioria, se reconheceu no seu exercício de cargos públicos, depois admirou a sua obra com refugiados, agora sentiu o choque da perda. Esse carinho é admiração, mesmo veneração para alguns, mas, a bem dizer, a isso chama-se respeito. O respeito, em política ou, em geral, na vida social, é já de si uma qualidade tão rara que merece ser tratado como um atributo ilustre ou até como uma promessa de salvação. A questão é que o respeito se enuncia num domínio mais vasto do que o da amizade, pois pode existir muito para além do convívio que a define e alimenta. Amizade, para falar com rigor, tem que ser proximidade com mútuo reconhecimento e permanência ao longo do tempo. Por isso, fica a pergunta, quantos amigos cabem nas nossas vidas?

Para essa questão já é possível procurar respostas. Uma é que, se o critério for o que hoje predomina, o das redes como o Facebook, o número depende da folha de cada pessoa, mas a média mundial parece ser de 338 “amigos”. Notou que a média não tem qualquer sentido, nem este conceito de amizade tem a menor substância? Claro que se deu conta disso. A artimanha do Facebook, ao chamar “amigos” a pessoas linkadas por um algoritmo, muitas das quais se desconhecem entre si, foi um sucesso empresarial, mas é uma fraude social. O Facebook e outras redes sociais são abismos de identidades fantasiosas e de relações falsas. Aliás, perguntando-se às próprias pessoas sobre estes seus “amigos” do Facebook, em inquéritos cuidadosos, as respostas comuns são que menos de um terço são realmente amizades, pessoas em que se confia. Menos de cem, portanto.

Robin Dunbar, professor emérito e uma das celebridades da Universidade de Oxford, trabalhou ao longo da sua vida em psicologia evolucionista e acha que tem uma resposta definitiva para esta pergunta. São 150 amigos, diz ele, mas desses só cinco são muito próximos, há mais dez que são a nossa rede de apoio, e os outros têm connosco alguma relação, aceitariam o convite para vir jantar no nosso aniversário e adeus até para o ano (resumiu esta teoria num livro publicado este ano, “Friends: Understanding the Power of Our Most Important Relationships”). Para chegar a este número mágico, Dunbar compara a dimensão do neocortex (onde se geram as perceções sensoriais, como as emoções, e a linguagem), com o tamanho global do cérebro, e mede o efeito da restrição dos recursos cerebrais e também do tempo de que dispomos para cultivar as amizades. Se ficou a desconfiar desta matemática, imagino que tenha razão, também não descortino como a amizade pode ser encaixado numa contabilidade de sinapses ou num horário de atendimento. Em qualquer caso, se a amizade é partilha de valores, retribuição de atitudes, capacidade de entendimento, reconhecimento mútuo, acompanhamento pela vida, então as amizades são poucas e até raras. Duvido que alguém escape a essa regra. Podem ser muitas ou poucas as pessoas conhecidas, pode ser enorme o respeito granjeado, pode-se ser mais ou menos popular nos círculos que se frequenta, mas amizade mesmo é outra coisa.

Assim sendo, que tantas pessoas tenham querido chamar amizade ao respeito que tinham por Jorge Sampaio, diz muito do seu estatuto. Na perda, tantos e tantas buscaram mais proximidade. Cada pessoa que se dizia ser sua amiga, para mostrar o respeito que por ele tinha, homenageava-o na despedida mostrando a sua ponte para essa ausência definitiva. Fragilidade? Força.

(no Expresso)

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