28-03-2007 Notas de um Moleque Desocupado: Euclidianas Daniel Frazão * 2007.03.28
Não cheguei a ler Euclides da Cunha no colégio. Só peguei pra ler agora. E que leitura! Sempre me interessei por esse lado inóspito, abrasador, inatingível e ao mesmo tempo tão próximo do Brasil. A história contada nas entrelinhas. Adiei a leitura dos Sertõespelo motivo mais manjado do mundo, preguiça. E certo preconceito também. Mas tem muita gente boa por aí. Bem, talvez não tantas assim hoje em dia, mas se você estiver disposto a cavar algumas sepulturas vai encontrar muita gente boa. O tal do Euclides é uma delas (saiu daqui do lado, Euclidelândia. Com certeza você já viu algum ônibus enferrujado indo pra lá...). Graciliano é outra. Lobato. Dos Anjos. De Andrade, seja Mário ou Oswald. Mas voltando ao assunto do Brasil... Ele é assustadoramente rico em sua miséria. Lá estava eu, sentado no quarto às duas da manhã, um calor dos diabos, sem conseguir parar de ler os Sertões. Toda aquela letargia era elétrica e instigante. E a figura de Antônio Conselheiro, essa figura disforme brotada do solo infértil da seca, pulava para fora do livro e rodopiava no quintal. Profecias agrestemente tresloucadas proferidas por um nordestino insano de roupas puídas e barbas emaranhadas, fruto da miséria e da riqueza, do momento e da História, da fé e da lenda. “... há de rebanhos mil correr da praia para o sertão; então o sertão virará praia e a praia virará sertão. ... haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. ... haverá muitos chapéus e poucas cabeças. ... ficarão as águas em sangue e o planeta há de aparecer no nascente com o raio do sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu... Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí será o fim do mundo. Se apagarão as luzes.” Não sei por que, mas me lembrou Bob Dylan, principalmente na A Hard Rain’s A Gonna Fall. A métrica estranha e a repetição de palavras (naturalmente que nascidas de uma vida limitada pelo horizonte ilimitado do agreste) lembram muito o Dylan. Tudo é uma extensão do que veio antes. Nossa vida jorra de nossa História. Desde o início. Desde quando o Brasil era um emaranhado de raízes selvagens, de praias hostis, lá pelos idos de 1500. Uma terra para onde vinham os derrotados, os condenados e os sem nada. Pode imaginar? Feche os olhos. Volte lá pra 1500 e pouco. As galés aportando em nossas praias, cheias de gente que não tem nada a perder porque não tem nada, prontas para povoar uma terra-monstro. Os derrotados, os feios, os duvidosos. Agora abra os olhos. Veja esse país de terceiro mundo. Cheio de gente que se espreme nas filas dos pronto-socorros, dos balcões de emprego, gente no ponto de ônibus ao meio-dia, suada e sem se importar. Sem esperar por nada, já que nasceu do nada. E no meio do calor, do domingo, da segunda, eles dão uma risada. Gente que não aparece em Hollywood. Veja esse país que é grande e pequeno ao mesmo tempo. Esse país que sabe de sua “pequenez”, que sabe onde está e sabe para onde não vai. Não vai porque não pode. E sabe que não pode. As coisas começam a fazer sentido, não é? Você começa a se sentir próximo de todo mundo, com o mesmo sangue. Desde a época daqueles expatriados de 1500. Desde Antônio Conselheiro beatificando o sertão, de Lampião tomando o poder na marra debaixo de sol, até as pessoas que se perdem nas ruas do Rio de Janeiro sem saber o que vai ser; gente que se perde entre o bem e o mal num emaranhado de barracos; gente como eu e você, todos debaixo do mesmo teto, debaixo do mesmo relento. Uma chuva pesada está para cair. Foi Dylan que disse isso, mas o que ele pode saber?
Daniel Frazão daniel.frazao@gmail.com
* Artigo publicado no jornal “A Voz da Serra, Nova Friburgo, no jornal de Cabo Verde, "O Liberal" e no http://br.groups.yahoo.com/group/dialogos_lusofonos/
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