09-09-2021

RATINHOS OU GAIBÉUS, por António Batista

Eram designados de «ratinhos» os beirões que, em grupo, trabalhavam no latifúndio alentejano, colmatando a crónica falta de mão-de-obra nas grandes e coletivas tarefas agrícolas daquela província do sul de Portugal

[Forum Elos]Não era só no Alentejo, mas também no Ribatejo, onde Alves Redol os apelidou de Gaibéus, e trabalhavam na faina da ceifa do arroz em condições bastante precárias e dormindo em grandes armazéns, onde faziam a sua vida fora da faina, quer fossem homens e mulheres, estas com crianças que as deixavam no armazém enquanto iam para a faina.

No Alentejo era mais a ceifa dos cereais. Mas outros se entregavam a outras tarefas que o capataz conseguia arranjar, com malhas, vindimas e podas.

A vida árdua, tornava-se em teimosia, que sob um sol escaldante, procuravam em fazer o trabalho mais rápido para mais rendimento obter, a sede, a fome, a pobreza extrema. Por outro lado, o modo como preenchiam as escassas horas de lazer, os sonhos de uma vida melhor, os projetos sem logro, o vinho para alegrar os espíritos.

Alves Redol, José Saramago, José da Silva Picão e Urbano Tavares Rodrigues, falam deles nas suas obras, descrevendo a vida árdua que levavam

E segundo José da Silva Picão – nota curiosa – entre esses homens, não se encontram apenas os que se entregam aos labores do campo nas suas naturalidades, mas também muitos de profissões e hábitos diversos – sapateiros, alfaiates, barbeiros, etc. É que, para todos eles, a ceifas do Alentejo proporcionam-lhes melhores lucros do que os ofícios que exercem nos seus rústicos lugarejos

José Carlos Silvestre, com sua mulher Maria do Carmo, era um casal que todos os anos faziam a campanha, primeiro no Ribatejo e depois no Alentejo. Tinham dois filhos, que durante esse tempo ficavam ao cuidado dos pais da Maria do Carmo.

Tantas foram as fainas e o tempo que passavam naquelas terras, que um dia o José disse á esposa:

– Passamos mais tempo por aqui do que na nossa terra. E se nos mudássemos para uma Aldeia aqui no Alentejo?

– Teríamos que refazer as nossas vidas de novo e encaminhar os miúdos para uma escola cá do sitio- disse a Maria do Carmo.

E da conversa passaram á prática, alugando uma pequena casa numa Aldeia também ela pequena. Já outros Beirões haviam feito o mesmo anteriormente e por grandes zonas do Alentejo havia “ratinhos” espalhados por todo o lado, principalmente no Norte Alentejano, onde começavam a surgir pequenas Aldeias totalmente povoadas por Beirões.

No inicio não foi nada fácil conviver com as pessoas que por lá viviam, pois sempre olharam os “ratinhos” como gente que lhes vinha tirar o ganha pão e com salários mais baixos.

Mas, com a maneira afável com que os Beirões tentavam angariar a amizade da gente Alentejana, as coisas foram-se compondo e em cada ano eram mais os casais que se fixavam por aquelas bandas, começando por viver em barracões de guarda aos fardos de palha para os animais, até conseguirem arranjar dinheiro para construírem as suas casas bastante toscas, mas sempre mais acolhedoras que os barracões.

O José e a Maria do Carmo tiveram sorte na casa que arrendaram, através dum capataz, que nutria por eles uma grande simpatia, pela entrega ao trabalho sem queixumes como muitos outros. Tiveram ainda a sorte de trabalharem para um latifundiário que tinha muita consideração pelos seus assalariados e que, sabendo que pretendiam fixar-se naquela região, lhes deu um grande pedaço de terra para cultivarem, apenas com a condição de lhe pagarem uma pequena parte da venda das culturas.

O José, agradecido, logo deitou mãos á obra e começou a cavar a terra com a enxada que havia comprado e a preparar uma pequeno espaço para dele fazer uma horta e a Maria do Carmo poder tratar enquanto os miúdos os acompanhavam, pois naquelas redondezas não havia escola para os ocupar, procurando aprender algumas letras com o barbeiro da Aldeia, que era o mais letrado de todos.

A pouco e pouco, outros Beirões se foram fixando por aquelas bandas, principalmente na zona de Niza e Alpalhão e nas margens do rio Ródão, embora houvesse já muitos “ratinhos “ naquele que havia de ser o distrito de Beja.

Com o suor devido ao calor do Alentejo, o José chegava a casa, não só com a roupa encharcada, mas também cansado da faina e com as mãos bem rugosas devido á enxada.

Mas a horta foi feita, embora tivessem que ir buscar baldes de água a uma ribeira que passava perto, as hortaliças, batatas, feijões e outros legumes, lá iam crescendo, dando para a sopa do dia a dia, por vezes acompanhada de feijão cozido e um pouco de toucinho da carne que compravam na Aldeia, pois ainda não tinha dinheiro para criar porcos. Apenas duas galinhas e um galo, eram os animais que possuíam.

A terra onde habitavam tinha sido de pertença das ordens religiosas que por ali passaram, depois da conquista de Ourique por D. Afonso Henriques e antes dos mouros, foram povoados pelos romanos, cuja presença estava marcada em muitas ruínas que por ali havia.

O José, com toda a sua dedicação á terra, não se podia queixar e transformou um terreno arenoso e de mato, numa terra fértil, que os habitantes não se fartavam de elogiar, pois consideravam-na um baldio sem qualquer serventia. Desde o milho, trigo e centeio, tudo dava certo e a sua venda dava para pagar ao benfeitor do latifundiário e até para comprar um porco e uma porca para procriação e poderem encher a salgadeira para um ano de pedaços de carne.

Durante a faina da ceifa e da vindima, juntava-se aos demais homens e mulheres, para assim angariar alguns escudos para as despesas.

Os rapazes iam crescendo e ele e a Maria do Carmo iam ficando mais velhos.

Por vezes, os Beirões das redondezas, juntavam-se para lembrarem as suas terras e dando graça a Deus, por lhes ter sido concedido pedaços de terra que transformaram em terrenos de cultivo.

E assim se foram espalhando pelo Alentejo, podendo dizer-se, com toda a justiça, que aquelas terras alentejanas, muito devem aos Beirões que ali se fixaram e se entregaram á terra como se ali tivessem nascido.

Mas, todos os anos, vinham novos “ratinhos” para as fainas. O Alentejo não era muito fértil em agricultura. Mas os senhores latifundiários tinham sempre tarefas para executar e o Alentejo se foi desenvolvendo como as diversas ordens religiosas o tinham iniciada.

Mas tudo tem um fim e o José e a Maria do Carmo iam-se sentindo cansados. Os filhos já eram bem crescidos e o mais velho não tardou em encontrar a rapariga com quem havia de passar o resto da vida. O outro irmão, embora mais novo dois anos, já namoriscava e assim se dava o prolongamento das famílias que depressa esqueciam as origens Beirãs e se tornavam verdadeiros alentejanos, que se foram espalhando pela vasta região e contribuindo para que aquelas terras se tornassem férteis, dentro do que a natureza permitia.

José e Maria do Carmo ali se finaram.

Para trás ficava uma longa e dura caminhada, mas por certo que lá no alto se deveriam sentir felizes por tudo aquilo que passaram: suor, dor, sofrimento, mas olhavam as terras que do nada fizeram culturas e que seus filhos continuavam.

Beirões ou Alentejanos, pouco importava. Haviam contribuindo para um pouco de desenvolvimento e isso transformava-se em felicidade, que no além devia estar com eles.

(António Batista – 21 de Maio de 2020)                  https://contosepoemas.home.blog/2020/05/21/ratinhos-ou-gaibeus/