05-09-2021AFINAL, ONDE PARA A ONU? João MeloJoão Melo / DN Opinião Os atuais acontecimentos no Afeganistão, além das suas implicações internas ou, quando muito, bilaterais, estão igualmente relacionados com o tema da democracia global, colocando no centro do debate aquela que, afinal, é a pergunta chave: como implantar a democracia em todas as sociedades e regiões? O presidente norte-americano Joe Biden justificou a saída dos EUA do Afeganistão com uma afirmação brutal, que parece responder a tal pergunta. Disse ele (cito de memória): - "Se os afegãos não querem travar esta luta, não seremos nós a fazê-lo!". Será, como já se apressaram alguns a concluir, que os EUA deixarão de ser os "polícias do mundo" e, sobretudo, irão abandonar efetivamente a estratégia inaugurada por Reagan e desenvolvida por Bush de "impor a democracia à força de balas e canhões"? Será preciso ver para crer. O facto é que a frase de Biden é idêntica a outras frases já proferidas por outros altos responsáveis norte-americanos nas últimas décadas. O então secretário de Estado John Kerry, por exemplo, afirmou em 2013 e 2015, que não havia "solução militar" para a Síria. No passado mês de agosto, o representante dos EUA para o Afeganistão, Zalmay Khalilzad, disse a mesma coisa em relação ao referido país, antecipando a saída das tropas americanas da região. Porém, o facto de, por vezes, os dirigentes americanos darem mostras de "cair na real", não demonstra que a maior potência imperial da nossa época esteja disposta a abandonar as suas políticas... imperialistas. Não seria isso, afinal de contas, uma contradição? É aconselhável não esquecer que persistem as pressões dos setores internos e externos interessados na guerra. O complexo industrial-militar norte-americano, desde logo, não é nenhum fantasma e muito menos uma "invenção comunista": existe mesmo, como reconheceu o ex-mercenário e autor Sean McFate, em entrevista recente a este jornal (14 de agosto de 2021). Entretanto, mais patéticas ainda são as "pressões" dos diferentes órfãos europeus (políticos, analistas, jornalistas e outros) que continuam a lamentar-se, por todos os meios, por causa do abandono do Afeganistão por parte dos EUA. De facto, há por aí malta que continua a sonhar com a necessidade de recorrer a guerras para salvar a "democracia liberal" (?). É óbvio que, em certos momentos da história, a guerra é imprescindível para impedir a tirania global, como aconteceu na 2.ª Guerra Mundial. Não tenho, também, qualquer relutância em admitir a necessidade de medidas militares (inteligência, ataques dirigidos, guerras mais ou menos localizadas) para conter todas as formas de terrorismo e não apenas o islâmico. Isso é uma coisa. Outra é tentar impor a democracia em todo o mundo à base de intervenções militares ou golpes de estado, mais ou menos "primaveris". Além do mais, tal estratégia tem-se revelado de uma ineficácia confrangedora. Atendo-me unicamente às "primaveras árabes", a única que teve um relativo sucesso foi a da Tunísia, por uma razão simples: foi a única verdadeiramente genuína e com visão do "dia seguinte" (o que fazer depois de derrubar a ditadura). Todas as outras foram um rotundo fracasso, tendo resultado em ditaduras ainda mais ferozes ou, então, na destruição pura e simples de países relativamente desenvolvidos e prósperos. O título desta crónica é, pois, enganador: a implantação da democracia global não pode ser feita, como alguns defendem, com novas cruzadas. Não pode tão pouco ser assumida como "missão" por um único país, mesmo que seja a maior potência mundial. Assim, não tenho grandes expectativas em relação à anunciada cimeira da democracia anunciada pelos Estados Unidos, a não ser saber se Joe Biden quer realmente inaugurar uma nova página ou apenas voltar à "América de Bush". Por fim, e como o que está em jogo é a "democracia global", onde para a ONU? Escritor e jornalista angolano. Diretor da revista África 21 Pela democracia global, marchar, marchar
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