Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


01-09-2021

Afeganistão, texto de Artur Queiroz


O Afeganistão é um país inóspito, montanhas sobre montanhas, rochedos, pedras soltas são o manto da terra e uma finíssima poeira anda sempre no ar. As cavernas são palacetes dos mais bafejados pela sorte e uma tâmara seca é refeição para todo o dia Alexandre o Grande quis apoderar-se daquelas paragens para ali criar uma plataforma que lhe permitisse conquistar toda a Ásia e apoderar-se da rota da seda. Retirou vergado ao peso da derrota.

O império Britânico, no século XIX, concentrou forças militares na região para impedir as expedições do império Russo de chegarem à Índia, com mais de oito quilómetros de costa, já que o território incluía o Paquistão, com mil quilómetros de costa marítima. Assim ficavam abertas as portas também para o Golfo de Omã e o Mar Arábico. Todas as rotas comerciais ficavam à disposição dos czares. Para o império russo era o fim do gueto dos mares gelados e as portas abertas para o mundo. Os britânicos levaram o cerco muito a sério e criaram o Corredor de Vakhan, no Tajaquistão, para que as expedições russas não chegassem ao Afeganistão e depois aos mares quentes.

Os políticos de Londres sabiam que o Afeganistão é um país estratégico porque liga o Médio Oriente à Ásia Central e à Índia. Assim, no final do século XIX criaram ali um Estado Tampão com o fim único de isolar os russos em terra, porque os seus mares gelam no Outono, Inverno e Alta Primavera. Foi uma forma expedita de eliminar a concorrência do comércio das especiarias, ouro e pedras preciosas.

Os afegãos nunca se submeteram aos britânicos e guerrearam os invasores estrangeiros. A Terceira Guerra Anglo-Afegã terminou com o Tratado de Rawalpindi, em 1919. Os ingleses foram derrotados e retiraram humilhados. Em 1978, os grupos revolucionários marxistas tomaram o poder e pediram o apoio da União Soviética, no ano seguinte. Este chamamento soou como música aos soviéticos, que imediatamente enviaram tropas do Exército Vermelho, para o território, passando pela República Socialista Soviética Tajique (Tajaquistão). Finalmente estavam livres do gueto do gelo. Os mares quentes estavam ao alcance das autoridades de Moscovo. Os serviços secretos dos EUA e britânicos fizeram soar o alarme.  

Em breve entraram em cena os “mujahidin” que não eram mais do que tropas criadas pelos EUA, Paquistão, Arábia Saudita e os “expert” do passado, serviços secretos de Londres. A CIA moldou um saudita da família real, Osama Bin Laden, para comandar os insurgentes. Os rebeldes triunfaram, em 1992. Não é possível combater contra soldados que comem por dia uma tâmara seca, bebem um dedal de água e dormem nas cavernas do fim do mundo. O Exército Vermelho retirou, quando o Governo de Cabul caiu. Atrás ficou uma guerra civil sangrenta que culminou com a ascensão ao poder dos talibãs, em 1996, por delegação de Osama Bin Laden, o todo-poderoso operacional da CIA.

Em Dezembro de 2001 o Conselho de Segurança da ONU deu carta-branca à criação de uma força internacional “para a segurança” no Afeganistão. Tropas dos EUA e de vários países da NATO (Portugal incluído) invadiram o país e derrubaram o governo dos talibãs, que se organizaram na táctica de guerrilha. Na época, Fidel Castro aconselhou o presidente Bush a não enviar tropas para o país. “Não mandem os vossos filhos para um país inóspito onde vão morrer por nada”. Não foi ouvido. Quando as tropas invasoras começaram a ter sérios revezes militares, responderam com graves crimes de guerra, bombardeando populações civis.

Os invasores estrangeiros criaram (sempre com o acordo da ONU), em Novembro de 2001, a Autoridade Afegã Interina cujos membros eram conhecidos narcotraficantes. Para “reconstruir” o Afeganistão teve lugar, em 2002, a Conferência Internacional de Doadores em Tóquio. Foi criado um fundo de 4,5 mil milhões de dólares, administrado pelo Banco Mundial. Nesta fase, o tráfico de ópio já era o mais importante negócio no Afeganistão. Após a queda do regime talibã, em 2001, e até 2007, o negócio aumentou mil por cento! O Comité das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC) emitiu nesse ano um relatório onde denuncia que 93 por cento dos opiáceos (ópio e heroína) no mercado mundial tiveram origem no Afeganistão.

O presidente Joe Biden disse agora, com uma sinceridade louvável, que os EUA nunca tiveram a intenção de reconstruir o Afeganistão. Os seis triliões de dólares lá enterrados foram apenas para dar uma mão à indústria bélica norte-americana, hoje a única estão nas mãos de Washington. Todas as outras já são de estrangeiros. Além do negócio de armamento, os EUA também criaram em Cabul a Universidade Americana do Afeganistão, uma instituição ligada à CIA e que tinha a missão de formar mão-de-obra para manter a ocupação estrangeira.

Ao fim de 20 anos de guerra, os talibãs regressaram ao poder, triunfantes. As forças estrangeiras retiraram à pressa, vergadas ao peso da derrota. Mas deixaram no país unidades guerrilheiras, para criarem obstáculos aos vitoriosos. A História repete-se. Os vencedores vão fazer um governo e os invasores estrangeiros deixaram as sementes de uma guerra civil. Vamos ver se conseguem criar um novo Osama Bin Laden.

Um país montanhoso, desértico, com 32 milhões de habitantes, sem frente para o mar, só pode ser um tampão, seja aos sequestrados pelos mares gelados da Federação Russa ou aos reconstrutores da Rota da Seda, a República Popular da China. 

 

Também é paraíso da papoila, uma bela flor rubra. O ruído dos Media ocidentais, latidos raivosos, serve agora para esconder situações escabrosas e evitar perguntas incómodas. O Banco Central do Afeganistão informou, em comunicado, que nove mil milhões de dólares em reservas estratégicas foram transferidos “para o exterior”, pelo governo dos EUA/NATO. Onde está o dinheiro?

A preocupação com os direitos das mulheres afegãs não tem correspondência com os direitos espezinhados e confiscados das mulheres nas monarquias do Golfo. Ali não têm direito de cidadania. Os emirados do Golfo Pérsico, pior, muito pior. A Arábia Saudita é o cemitério dos direitos das mulheres. Washington e a NATO apoiam estes regimes. Um pretexto esfarrapado que nada tem a ver com direitos humanos, antes uma manifestação exuberante de terrorismo de estado.

O Estado Tampão vai continuar, se o Paquistão quiser. Mas a Federação Russa e a República Popular da China, nesta repetição da História, têm uma palavra decisiva. Provavelmente, a última palavra. Os povos submetidos pelos EUA e seu braço armado NATO perderam o medo ao papão. E agora vai ser difícil travar o desmoronamento do último império. Tinha que ser no Afeganistão.

 

Texto de Artur Queiroz