16-09-2020 FRANCISCO DE HOLANDA - ESCRITOR, DESENHISTA, ESPIÃO
FRANCISCO DE HOLANDA - ESCRITOR, DESENHISTA, ESPIÃO
Nasceu em Portugal, de pai holandês. Daí o sobrenome. É, de facto, uma das personagens mais coloridas do Renascimento português.
FRANCISCO DE HOLANDA era um artista do desenho, explicando em várias obras a importância da sua arte. Pelo meio, andou, a mando do rei João III, a espionar fortificações italianas, que desenhava.
Auto-retrato (ca. 1573), o artista apresentando o seu livro.
"biblioteca"
Artigo online (para assinantes):
https://www.publico.pt/2020/09/16/culturaipsilon/noticia/francisco-holanda-homem-renascimento-descobrir-1931689
Texto integral da edição impressa:
Público • Quarta-feira, 16 de Setembro de 2020
CULTURA
Francisco de Holanda, um homem do Renascimento ainda por descobrir
Estreia-se hoje na RTP2, pelas 22h, Francisco de Holanda, A Luz Esquecida do Renascimento, documentário que abre o universo do artista e intelectual português ao conhecimento alargado dos telespectadores
Televisão
José Marmeleira
Continua a redescobrir-se, senão a descobrir-se, a obra e a figura de Francisco de Holanda (1517-1584). Objecto de estudos e conferências, tema de exposições, como as que se realizaram em Évora, em 2019, no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, na Biblioteca Nacional, em 2018, ou no Museu do Dinheiro, em 2017, o humanista português é o protagonista de um documentário que tem estreia hoje na RTP2.
Francisco de Holanda, A Luz Esquecida do Renascimento, da autoria de Paula Moura Pinheiro, dá a ver desenhos, textos, livros, reconstituindo uma narrativa que atravessa o século XVI, entre Lisboa, Évora e Roma, da realidade das cortes às ruínas da cidade italiana. Um retrato vibrante, para o qual muito contribuem os depoimentos de Sylvie Deswarte-Rosa, Joaquim Caetano, Rafael Moreira, Isabel Almeida, Manuel Parada López de Corselas, José Cardim Ribeiro, Francesco Paolo Fiore, Vitor Serrão e Alessandro d’Alessio. Estes especialistas — a maioria historiadores de arte — traçam o percurso do tratadista e pintor, filho de António de Holanda, iluminador originário dos Países Baixos. Durante 50 minutos, biografia e obra sobrepõem-se numa atenção rigorosa às circunstâncias pessoais, ao contexto social e político, às afinidades artísticas e filosóficas, às transformações que marcaram aquele século fascinante e turbulento.
Homem de corte e cortesão, Francisco de Holanda começa a sua carreira na casa de D. Fernando, duque da Guarda, antes de passar para a casa do infante D. Afonso, bispo de Évora, e de beneficiar da protecção da rainha Dona Catarina. Em Évora, residência da corte de João III, contacta alguns dos principais humanistas, como André Resende, que passara pelas principais universidades europeias. É no interior das redes nobiliárquicas e intelectuais da época que vai erigindo a sua carreira, apaixonado pela Antiguidade Greco-Romana e os vestígios que dela ainda persistem na Europa. Entre 1538 e 1540, viaja pela Itália na comitiva do embaixador D. Pedro de Mascarenhas, e tem acesso ao círculo do qual fazem parte Miguel Ângelo, Sebastiano del Piombo, Perino del Vaga, Antonio de Sangallo, O Jovem. No centro do Renascimento, guardando na memória as iluminuras e os planisférios do pai, António, redescobre a utopia da Antiguidade clássica, que, nas palavras do historiador Vítor Serrão, virá a ter um eco profundo no seu pensar e no seu fazer. Resulta deste período a produção de Álbum dos Antigualhas, documento visual que, pelo desenho exuberante e detalhado, testemunha a paisagem cultural da Itália daquele século, da arquitectura à moda. O encontro do telespectador com estas imagens é um dos momentos mais comoventes do documentário: a pintura do artista e intelectual português transporta-o à cidade de Roma e à Itália do século XVI.
Pintura: arte do espírito
Mas não são apenas os precisos e preciosos desenhos de viagens que hoje podemos ver na televisão. São também as páginas dos tratados Da Pintura Antiga e Diálogos em Roma, obra em que narra os encontros com Miguel Ângelo — que os historiadores intervenientes consideram muito prováveis —, do estudo Do tirar pelo natural, consagrado à arte do retrato, e do álbum Imagens das Idades do Mundo, iniciado em 1545. A propósito, diante das cores e das figuras, do texto e o desenho desta obra, é difícil não evocar o universo visual do poeta e pintor inglês William Blake, surgido três séculos depois. "Essa é uma relação que se faz muito", considera Joaquim Caetano, director do Museu Nacional de Arte Antiga e participante no documentário. "E muito pela natureza geométrica com que [o Francisco de Holanda] percebeu e representou os dias da Criação do Mundo. Tinha que ver com uma certa ideia de abstracção, com a composição matemática das formas puras que estavam ligadas ao pensamento divino."
A questão do divino assoma justamente o documentário, associado à condição do artista enquanto demiurgo, concepção que o intelectual e artista português cultivou e defendeu. "Curiosamente, há uma iluminura de William Blake em que vemos a figura do Deus-pai a trilhar o mundo. É uma imagem que aparece muito nas iluminuras medievais: Deus a traçar as esferas, o universo, o planeta", acrescenta Joaquim Caetano. "A ideia do Deus-arquitecto é uma ideia presente ao longo da Idade Média e no pensamento de Francisco de Holanda. Deus é o grande arquitecto do universo. E o que o artista faz não é copiar a realidade, mas voltar a mimetizar esse processo de criação, aquilo a que Leonardo da Vinci chamava ‘desenho interno’. Não a partir da realidade, mas do desenho interno, do cérebro. Isso respondia a um desejo prático: retirar a arte da manualidade, que era socialmente mal vista. Torná-la coisa mental, assimilá-la às artes do espírito."
Este foi um dos maiores contributos de Francisco de Holanda, cuja carreira, relata-nos o documentário, viria a sofrer oscilações menos positivas nos reinados de D. Sebastião e D. Filipe I de Portugal. Numa época de intensas lutas políticas, a sua visibilidade foi-se reduzindo, obrigando-o a procurar novos patronos, em o sucesso desejado.
Já abandonado pela corte, publica Da fábrica que fallece á cidade de Lisboa e Da Ciência do Desenho, que merece correcções censórias do padre Bartolomeu Ferreira, antes de falecer em 1585. Contra a malícia do tempo, expressão citada por Sylvie Deswarte-Rosa, incansável estudiosa da sua obra, e a decadência do humano, sobreviveram uma obra teórica e pictórica que continua a deixar perplexos estudiosos e investigadores europeus. E sobre as quais ainda haverá muito por conhecer e histórias por contar. Até lá, Francisco de Holanda, A Luz Esquecida do Renascimento, com as palavras dos historiadores e as imagens que o artista nos deixou, abre-se como uma porta para o conhecimento de uma personalidade, de um pensamento e de uma produção visual que atravessou o Renascimento até ao século XXI. E, por consequência, para o conhecimento do património da arte portuguesa e europeia.
Ouvir o documentário na plataforma RTP-Play:
https://www.rtp.pt/play/p7665/francisco-de-holanda-a-luz-esquecida-do-renascimento
|