Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


04-05-2010

Lusofonia em Foco por Leonel Cosme


Lusofonia em Foco 

Segunda-feira, 31 de Março de 2008

A PROPÓSITO DA VIAGEM PRESIDENCIAL A MOÇAMBIQUE  

 

TEMPUS LENIT ODIUM  

por

Leonel Cosme  

   Das imagens que os noticiários televisivos nos forneceram sobre as visitas oficiais que o Presidente Cavaco Silva fez, no mesmo mês de Março (significativamente?), ao Brasil e a Moçambique, sensibilizaram-me espe-cialmente duas:

   — uma que focava a deslocação ao local onde a Primeira Dama leccionara durante o período em que, nos anos sessenta, o marido prestara serviço militar na então cidade de Lourenço Marques, agora fazendo um percurso a pé assistido por uma multidão entusiástica — que me trouxe à memória a multidão igualmente entusiástica que, na capital angolana, em 1982, ova-cionara o Presidente Ramalho Eanes, no seu percurso pelas principais ruas e avenidas de Luanda. E logo pensei, pela enésima vez: o povo africano não guarda esqueletos históricos no armário da memória.

   — a segunda imagem focava a deslocação à Ilha de Moçambique, onde as ruínas do passado colonial, como de uma memória em decomposição, ferindo a ostentatória ideia de “Património da Humanidade”, ferem particularmente a gloriosa ideia da “presença histórica” de um Portugal aventureiro que suscitou a Cavaco Silva o imperativo de o Estado português contribuir materialmente para o restauro das edificações que já tinham emocionado Agostinho da Silva, em 1988, que considerava Moçambique como a charneira de ligação de Oriente e Ocidente.                                                       

                                     

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   Embora economista de formação académica, o que não quer dizer distanciado de cultura histórica, Cavaco Silva há-de ter pensado (a reportagem por mim vista foi omissa a este respeito) que naquela Ilha arribou Luís de Camões, em 1568, com “Os Lusíadas” salvos do naufrágio na foz do Mecon, sendo ele próprio “salvo” da miséria em que o encontrou Diogo do Couto (provavelmente só acompanhado pela “presença serena / que a tormenta amansa” duma Bárbara escrava), e outros amigos também vindos da Índia, que custearam o seu regresso a Portugal, onde, como reza a lápide que outro amigo mandou colocar sobre a sua campa rasa, “viveu pobre e miseravelmente e assim morreu”.

   Também na Ilha de Moçambique ficou impressionado Miguel Torga, na visita que ali fez em 1973 e de que dá nota no seu Diário XII:

   Aqui a pátria chegou e sobrou. Aqui todos os que vieram se transcenderam, deram o melhor de si, mereceram a aventura e a glória. Que orgulho legítimo eu sinto a compartilhar este sincretismo de raças, de culturas, de fé e de sentimentos! Brancos, pretos, pardos e amarelos num convívio fraterno, os vivos a mourejar ombro a ombro, os mortos a repousar lado a lado. O docel de um púlpito que lembra uma sombrinha chinesa, altares cristãos que parecem destinados a Buda, uma capelinha manuelina a dar guarida ao corpo do primeiro bispo do Japão. Ah, génio lusíada, quando acertas! Quando não te abastardas! Quando te medes com o impossível! Fazes de um banco de coral o centro geométrico da concórdia do mundo! (...) O próprio Camões, tão descabido em Luanda e no Lobito, fica aqui bem, de peito aberto ao ar marítimo do Oriente. Em vez de uma ilha real, com latitude e longitude, tenho a impressão de surpreender um acto de imaginação da pátria.

   A reportagem não mostrou se na visita do Presidente português, que se fez acompanhar dos Ministros da Cultura e da Educação e de quarenta empresários — quando foi à Ilha e quando defendeu a Lusofonia como um meio de estreitar afectividades e interesses entre os países de língua oficial portuguesa — estiveram presentes os escritores moçambicanos que o leitor português mais notabilizou em Portugal. Essa ausência, se existisse por outro motivo que não o critério da escolha dos eventos transmitidos, não seria com certeza pela mesma razão que um “cabecilha nacionalista” invectivou Miguel Torga, há mais de trinta anos, afirmando que “tudo estava errado na África portuguesa e que, portanto, rua quanto antes, e adeus para a eternidade.”

   No momento, Torga lembrou-se de um episódio ocorrido, em 1954, num congresso de escritores, em S.Paulo, em que “um camarada brasileiro apostrofava a colonização portuguesa, que desejaria mil vezes trocada pela holandesa.”

   ... E, quando a assistência esperava de mim um protesto indignado, apenas comentei, prazenteiro: — Estava aqui a pensar no que seria o meu desespero se me visse na triste situação de ouvir coisas em flamengo... Mas, felizmente, oiço-as em português...

   Ora, também com o meu actual interlocutor acontecia o mesmo. O homem falava a minha língua. E despedi-me afavelmente, de sorriso nos lábios. Era um sorriso de esperança, mas não lho disse...

   Se fosse vivo, Torga, que falava do Brasil como “dos meus assombros de menino (...) cais do lado de lá do meu destino” e que, no seu último Diário, numa nota de 6 de Fevereiro de 1993, escrevia «Quem contratou a submissão nacional às ordens de Bruxelas, esqueceu-se de especificar que a carta de Pero Vaz de Caminha de quinhentos é um juramento português de amor e fidelidade eternos à Terra de Santa Cruz e à sua gente», haveria de reservar um espaço no seu Diário dedicado à visita de Cavaco Silva, para participar na comemoração do segundo centenário da chegada ao Brasil da família real portuguesa. E nesse espaço, lembrando-se da verrina do “cabecilha” moçambicano, haveria também de registar a invectiva desferida pelo polemista brasileiro Antônio Torres, em 1925, no seu livro As Razões da Inconfidência, contra a colonização portuguesa, no qual exortava os compatriotas a promoverem a “deslusitanização gradual e definitiva do Brasil (...) transmissora de um dialecto obscuro e atamancado.” E que Agripino Grieco, no prefácio ao mesmo, justificando “o justo revide à história da colonização portuguesa no Brasil”, aduzia que a língua portuguesa “apenas nos prejudicou, por nos afastar da simplicidade francesa, compelindo-nos à ênfase dos árcades e dos frades.”

   Estaria certamente a pensar quanto melhor seria para o Brasil se os franceses que “estanciaram” no Maranhão entre 1615 e 1624 tivessem alargado a sua pretendida França Equatorial a todo o território brasileiro... Outros, sofrendo do mesmo “complexo parricida” (no dizer irónico de Gilberto Freyre), teriam preferido falar flamengo, se a Nova Holanda que os batardos pretenderam dilatar, a partir de Pernambuco, em 1629; ou falar castelhano, se os patriotas brasileiros não tivessem resolvido militarmente a seu favor os conflitos fronteiriços com os vizinhos Uruguai, Paraguai e Ar-gentina...

   Estranhamente, nenhum adoçou os seus “revides” com o facto indesmen-tível de com a ida de D.João VI e a sua numerosa corte se terem começado a implantar os alicerces da independência do Reino Unido do Brasil com a configuração territorial que hoje possui e que foi cimentada com a “língua geral” portuguesa... — algo parecido com o que aconteceu em Moçambique e nas outras ex-colónias africanas, em que a ocupação violenta e a língua imposta pelo colonizador foram o cimento da unificação nacional.

   Diziam os latinos que tempus lenit odium e tempus est optimus judex rerum omnium. Cavaco Silva, neste ano de 2008, para ele inesquecível, se sentiu que fizera duas viagens atlânticas para, sanados os contenciosos, relançar a história, há-de ter pensado, com o orgulho de nacionalista assumido, que ainda há pequenos países, como Portugal, que têm uma “alma” maior do que o seu tamanho...  

   Leonel Cosme

http://huambino.blogs.sapo.pt/11390.html