23-07-2021Do Meu Norte a Sul, Por Ulika da Paixão FrancoDo Meu Norte a Sul Por Ulika da Paixão Franco Tudo começa com a importância dos nomes. O meu é Ulika e sabe-se que em Umbundu, uma das línguas nacionais de Angola, Ulika significa “Sozinha”, mas há quem diga que também pode significar “filha única”. Outros afirmam que Ulika traduz-se por Única, qualidade, aliás, que todos partilhamos. Nasci em Luanda, filha de uma Lobitanga e de um Malanjino, com o tronco a desaguar raízes a Norte de Angola, no Gulungo Alto, e de Portugal, no Porto. É que se os nomes dizem muito dos seus nomeados, também os troncos revelam um tanto das suas raízes. E eu, nascida a Sul, decifro-me no Norte que é sempre fio de uma meada. Por um desses novelos nasceu meu pai, ele a quem o destino entregou a herança e a força de um nome: Ribeiro dos Santos. Sem escapar à mestiça sina de ser guerreiro, na sua curta vida meu pai haveria de lutar por um ideal de Verdade que ainda muito novo o fez cativo nas malhas da PIDE em Luanda e o transportou num navio negreiro para Cadeia de São Nicolau, na Baía de Moçâmedes, onde lhe ditariam que teria de salgar águas e partir pedras levadas para a Metrópole para ser construção do ideal de Império. Também foi lá, durante os idos da I República, numa gráfica na cidade do Porto, que é o meu Norte, onde o meu tio-bisavô Pedro da Paixão Franco, fervoroso republicano, homem negro, intelectual, jornalista e fundador da imprensa em Angola, mandou imprimir a obra que os historiadores mais tarde haveriam de considerar como o primeiro grande romance da lusofonia: «História de uma Traição», assim se chamava obra que, em 1911, este meu antepassado escreveu, narrando a história da origem previsível da queda do Império, história essa que haveria de se ver queimada na Alfandega do Porto. E o meu âmago também é isto, banha-se num Douro que me corre nas veias e se estende da Ribeira até ao Kwanza. E volto ao Sul. Meses depois de completar um ano de idade vim para Portugal, onde fixei primeira residência na cidade de Lisboa. Ano e meio depois a minha mãe conseguiu o estatuto de refugiada política apressando o meu reencontro com o colo e o cheiro materno que nunca mais me haveria de abandonar. Logo ali decidiu levar-me consigo para a outra margem da zona Sul, onde foi fazendo a magia de transformar um pão em dois. Acordávamos quando ainda não havia sol e no colo da minha mãe podia sentir o cheiro dela misturado com o cheiro daquelas viagens até Lisboa, onde ela ia trabalhar e eu ia estudar no Externato Padre Cruz, brincar no jardim da Fonte Luminosa da Alameda, nadar na Piscina da Penha de França, comer as Bolas de Berlim que se vendiam na Rua Actor Vale onde eu ficava quando a minha mãe se atrasava, esperando-a na casa da minha tia Helena, uma mulher mágica que empreendia todo o tipo de curas com o seu sorriso. Entre uma e outra margem, fui feliz naquele T1 num nono andar de um prédio que se situava à entrada da Costa da Caparica. Foi ali que passei a minha infância até ao 2.º Ciclo do Preparatório, altura em que a minha mãe conseguiu reunir o valor da entrada para um T2 às portas de Lisboa, num bairro chamado de Colina do Sol, Alfornelos, onde ela vive até hoje. Belém sempre foi para mim a zona de Lisboa com mais Luanda. A primeira vez que saí da casa da minha mãe foi para viver num alugado T1 na charmosa Rua do Embaixador. Sol de pouca dura, a casa tinha problemas nas ligações ao gás e meses depois lá estava eu de volta ao colo da mãe. Mas se o colo era quente, aquela liberdade de um T1 só para mim derretia ainda mais o meu coração e, levada pelas altas temperaturas, fui construir o meu lar num outro T1. Vivia agora na Madragoa, o inesquecível bairro mais negro de Lisboa, onde as noites quentes passavam-se com a janela aberta para a Rua Vicente Borga. Não podiam ter sido mais belos aqueles cinco anos de fim de juventude e início de maturidade. Foram antoninos esses em que da minha janela se podia sentir o cheiro a maresia e a sardinha, até ao dia em que a dona da casa me disse que precisava daquele T1 junto ao lavadouro da Madragoa. Foi então que voltei para Belém e fiz casa junto à Igreja da Memória, onde repousam os restos mortais de Sebastião José de Carvalho e Melo, o mestiço Marquês de Pombal. É da Calçada do Galvão que desço os dias e olho o Tejo, contemplo o azul do céu a mirar a outra margem. Continuo-me pela Lisboa que Belém tem até dobrar o Mosteiro dos Jerónimos e os seus trezentos metros de onde se destaca, ao cimo, a imagem do Santo Patrono de Portugal, Arcanjo São Miguel, e, ao centro, a da Santa Maria de Belém. Nesta altura já vejo a extensa Calçada do Galvão onde nunca me canso de acariciar os pés. Conheço-a de cor, tantas as vezes que, durante a noite, mais depressa ou mais devagar, a percorri em direção ao Centro Cultural de Belém para ouvir o Camané cantar afirmando que, mal chegue o verão, irá pôr a rua a seu jeito. Desta vez demoro-me mais, os turistas devolveram-me Lisboa e em frente ao Mosteiro tenho tempo para rodopiar e rodar a minha saia de baiana a fazer acordar mais um antepassado, desta feita a minha bisavó Índia do Brasil roubada à floresta pelas Caravelas que foram atracar no Porto de Luanda. Recordo-me agora do relógio alto no Porto da minha cidade natal e do passeio largo em que ela adormece vigiada de perto pelo meu bisavô Gervásio Ferreira Viana, personalidade forte, fundador da Liga Africana, que me deixou a herança e o privilégio de nascer com dom da cozinha e de uns os pastéis de bacalhau com o mesmíssimo e delicioso sabor que foi-me ensinado pela sua filha, minha avó Ermelinda Henriqueta. Foi também o meu bisavô Gervásio que como herança reservou-me um tio-avô, seu filho Gentil Viana, que fez as vezes do meu pai, educando-me como me educaria o meu nomeante, visto e ouvido pela última vez num programa de rádio chamado Kudibangela, que em kimbundu significa construção. De novo em Lisboa, na mariana freguesia de Belém, uns passos em frente e paro na Fonte Monumental da imperial praça ajardinada a brasões. Por momentos, na minha face sinto Luanda a beijar Lisboa e a noite, colorida pela magia da água estrelada, traz do Tejo a força dos negros que içaram as naus portuguesas do mar e construíram com sangue, suor e força esta cidade mestiça. Já lá vai a noite, agora um novo amanhecer e dali a umas horas estarei a acordar virada para o mar, a descer mais um dia em direção ao Terraço do Centro Cultural de Belém onde me deixo ficar num ritual de Domingo a ler jornais. Pé ante pé, vou até ao Padrão dos Descobrimentos e confronto-o inteiro, ele que é testemunha da resistência dos negros, da força que partiu tanta pedra, solidificou tanta calçada e construiu tantos destes monumentos que jazem lugares na história do Olissipo. Não fossem os negros, não fossem os mares que lhes lavaram o sangue ou os marinheiros que dos ventres das mulheres negras fizeram aurora e Lisboa nunca seria a cidade que nos conquista pela luz. Por mim, tenho as pazes feitas. Não me incomodam nem os brasões, nem os padrões pois sei que neles se encontra a força dos homens negros, os ombros largos dos homens da minha terra carregando a esperança salgada das lágrimas que verteram as mulheres do meu país. Kudibangela entoava meu pai. Construção, significava-o. Contruir uma cidade como Lisboa é colocar cimento no preto e no branco que cobrem a calçada, perceber que esse cimento é união e que essa união é o que me liberta. Desço a Calçada do Galvão em Lisboa e sinto Angola a pulsar em mais um dia. Respiro! Vai ser desta, Ulika, vai que o futuro pode ser agora. Em Lisboa podemos ser quem sonhamos, podemos ser cinco mundos e sete mares. Por isso Lisboa é negra, é mestiça, é branca.
|