16-06-2021Dom Raimundo e Dom Urbano Francisco G Amorim, Rio de JaneiroDom Raimundo e Dom Urbano
quarta-feira, 16 de junho de 2021
(Do Cancioneiro de Amigo do Pau Ferro – Século ... ?) (Arquivo Histórico de FGA)
Venham todos! Venham todos! Olhem quem está chegando! Dom Raimundo, nosso amigo. Nós dele sempre falando, Vem curvado, encanecido, Parece muito cansado. Estará envelhecido?
Dom Raimundo! Meu amigo. Tanto tempo já passou Quando de todos sumiste. Por onde andaste? O que viste? Conta, conta, dom Raimundo, Se é que podes falar! Mas antes vou-te abraçar.
Não sei como começar A história da minha ausência. Mas como é bom te abraçar. Os tempos passados contar, Foram de grande sofrer Passou ano após ano, E eu sem te ver, dom Urbano.
Uma noite, madrugada, Não sei o que aconteceu. Levantei-me, noite escura, Corri como louco pró cais, Eu sei que ninguém me viu, Sem saber o que fazer Entrei no primeiro navio.
Já tinham solt’as amarras Quando o capitão me viu. Perguntou-me quem eu era, Que serviço ali fazia. Era fim da Primavera. Não soube dizer meu nome Nem o que me acontecia.
Mandou-me então descansar E voltar quando pudesse. Adormeci, a sonhar Pensando que em casa estivesse. Mas era um sonho diferente, Perturbado e agitado, Estava muito inconsciente.
Os dias passavam calmos, Só mar à volta se via, Que rumo e destino tinha Eu nem ideia fazia. Um dia os céus se zangaram Um forte trovão se ouviu. As tempestades chegaram.
Durou dias a tormenta O navio se destroçava. Sumiam mastros e velas, A água tudo inundava. Descansar não se podia, E se algum sobrevivia Nem para comer já havia.
Procurei o capitão, Não encontrei mais ninguém. Sozinho naquele inferno Só a chorar mais água vem. Encostei-me lá num canto Esperar que o mar me levasse E me afogasse também.
Penso ter adormecido. Senti-me até afogado. Ao abrir um dia os olhos O mar era um rio, parado, O navio uma montanha De restos de paus, aos molhos. Nem me sentia acordado.
Ali não longe avistei terra Com gente na praia olhando Para os destroços. Desfeitos. Com muito esforço ergui-me E acenei àquele povo. Não tardou a que viessem. Para eu viver, de novo.
Era terra nunca vista. Nem entendi seu falar. Gente nova, de outras cores. De tão cansado dormi E quando voltei a acordar Olhei à volta, sorri, Sem saber se era a sonhar.
Passou tempo, muito tempo, De lá não podia sair. Arranjei quem me abrigasse Parecia quase feliz No meio de gente amiga. Mas só na praia vivia E nem um barco se via.
Sofri muito, envelheci. Um dia a esperança chegou Quando ao longe se avistou Era um navio, que eu vi! Fiz um fogo que se alastrou. Ao longe o capitão viu E o seu navio virou.
A terra foi um escaler, No comando, uma mulher! Era ela o capitão. Aos seus pés ajoelhei. Emocionado chorei E pedi que me levasse Sem saber onde aportasse.
Abracei a gente amiga Que me havia recolhido, E voltei de novo ao mar. Quantos dias se passaram Sou incapaz de contar. Logo que vi terra antiga Pedi para desembarcar.
Já não cheirava Pau Ferro Desde o dia que partira. Este cheiro tão gostoso Que me traz de volta ao lar. Dom Urbano, meu amigo Nem quero nisto pensar Após viver tanto perigo.
Dom Raimundo, receber-te Hoje é um dia de festa. Venham todos festejar, Tragam vinho, acendam brasa. Venha alguém para cantar Reencontramos um amigo Que voltou pra sua casa.
Notas: 1.- URBANO: o nome de um pequeno mercado no Rio de Janeiro 2.- PAU FERRO: nome da Estrada onde se situa o mercado 3.- RAIMUNDO: o encarregado do açougue (talho) do mercado
Postado por Francisco Gomes de Amorim |