Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


16-04-2021

UM RESPEITOSO À VONTADE - Fernando Venâncio


Um respeitoso à vontade

Fernando Venâncio Inline image

 

Primeiro uma história. Quando, aos 10 anos, fui viver no Minho, fiquei perplexo ouvindo colegas meus tratarem, com naturalidade, o pai ou a mãe por VOCÊ. Para mim, alentejano criado em Lisboa, esse tratamento, para com essas pessoas, era literalmente inaudito. Não sei como é hoje, mas espero vivamente que não se tenham deixado impressionar pelos melindres do Sul.

Ok, outra história. Hoje ouvimos malta nova (estudantes, caixeiros de lojas, assistentes de serviços ao telefone e semelhantes) tratarem-nos, também com naturalidade, por VOCÊ. E aquilo que em inícios de adolescência era, para mim, uma perplexidade, tornou-se para não poucos indivíduos em incómodo, não raro expresso na mais primária rabugice.

Não me vou espraiar. Como linguista, sei que os idiomas estão continuamente sujeitos a processos. Dizendo melhor: os utentes desses idiomas geram, a todo o momento, novas dinâmicas.

Há cerca de 300 anos, os falantes de português inventaram a forma VOCÊ para exprimirem um alto grau de consideração. Na obra "Arte de Furtar", redigida em 1652, muito provavelmente pelo padre Manuel da Costa S.J., achamos a primeira documentação da forma em apreço:

«Perguntou-lhe então o moço: "E quem lhe disse a Você, Senhor amo, que eu fiz tal aleivozia?"»

Sem cair em historicismos, assinalo quanto respeito "você" então exprimia. E estou convencido de que as pessoas que hoje dessa maneira nos tratam, a nós, anciãos e a caminho disso, o fazem como uma forma de respeito combinado com à-vontade. Acham, com razão, que tratarem-nos por "tu" não é o mais apreciável. Mas acham, com igual razão, que tratarem-nos por "o senhor / a senhora" é demasiada cerimónia.

Mas, que acontece? Dia sim dia não, saltam-nos ao caminho indivíduos que relatam, alarmados, terem-se ouvido tratados por "você" por, credo, um telefonista, uma caixeirinha!

Será triste dizê-lo, mas esses queixosos são os últimos dos moicanos. Um dia que não virá longe, o "à-vontade respeitoso" em que VOCÊ se vai hoje transformando estará generalizado, para geral contento.

Só mais uma história. Quando eu tinha uns 15 anos, era normal, pelo menos em Lisboa, ao perguntarmos as horas a um sujeito visivelmente possuidor de relógio, tratarmo-lo por "Vossa Excelência"...

Estão a ver como estas coisas se passam?

Não stressem, pois. E, caso continuem infelizes, digam então como desejariam ver-se tratados. É que, caramba, também nunca no-lo dizem.