18-11-2007Língua Portuguesa: Acusando, culpando e errando-Sobre o gerúndioO gerúndio tem sido discriminado e denunciado pelo hábito
Há dez meses no poder, o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, não conseguiu publicar um edital para a construção de uma vila olímpica, uma de suas promessas eleitorais. "Vamos estar publicando", eis o que lhe respondem quando indaga sobre o assunto. O projeto da vila foi concluído e enviado à Procuradoria-Geral, que pediu alterações. O projeto foi então endereçado para uma estatal, a Novacap, que fez as devidas alterações e mandou a papelada ao Tribunal de Contas. E aí? "Vamos estar publicando", informavam ao governador. O Tribunal de Contas pediu novas adaptações, o projeto foi devolvido à corregedoria do Distrito Federal, de onde voltou ao tribunal. "Vamos estar publicando." No Tribunal de Contas, o conselheiro responsável pelo assunto saíra de férias, decorreram os trinta dias regulamentares de seu descanso, o conselheiro voltou e descobriu-se que o terreno da vila olímpica não estava registrado em nome do governo. A papelada foi remetida a outra estatal, a Terracap, que fez o registro e mandou tudo de volta ao Tribunal de Contas. E o edital saiu? "Vamos estar publicando", respondiam ao governador. Irritado com as intermináveis delongas, no dia 28 de setembro passado o governador baixou um decreto demitindo o gerúndio. Motivo: ineficiência. Era o gerúndio oficialmente acusado de leniente e enrolador. A demissão do gerúndio saiu em decreto publicado no Diário Oficial e completa um mês de vida neste domingo – e, até agora, o edital da vila olímpica não foi publicado. A conclusão é inarredável: o culpado, veja só, não era o gerúndio. Há uns dez anos, uma parcela expressiva de brasileiros passou a implicar com o gerúndio ou, mais propriamente, com o gerundismo, nome dado à praga infecciosa que leva falantes do português a fazer uso abusivo do gerúndio. A versão mais popular informa que a praga surgiu entre operadores de telemarketing, que dizem "Vou estar transferindo sua ligação", em vez de simplesmente dizer "Vou transferir sua ligação". E a praga decorre da tradução rudimentar de manuais de telemarketing escritos em inglês. O idioma de Shakespeare, de fato, usa o gerúndio com entusiasmo e, na tradução às pressas, a frase "I will be sending..." virou "Eu vou estar mandando...". A novidade, para alguns, é que nada disso faz sentido. É verdade que operadores de telemarketing usam o gerúndio com franca voracidade, mas eles não criaram essa forma de expressão – nem ela vem do inglês mal traduzido. Aos leigos, a influência de um idioma sobre outro pode parecer algo tão misterioso quanto o sorriso de Mona Lisa, mas a sociolingüística há muito já mostrou que uma língua influi no vocabulário de outra, mas não na estrutura, a menos que haja um ambiente de bilingüismo. Como não se pode dizer que operadores de telemarketing formam uma comunidade especialmente bilíngüe, a tese da influência do inglês é só um palpite de amador. "São explicações de quem não entende nada de português", diz a professora Odete Menon, da Universidade Federal do Paraná, que estuda mudanças no português há três décadas e, há dez anos, dedica-se ao velho e bom gerúndio.
Em História de Portugal, uma obra do século XVI, escrita por ninguém menos que Fernão de Oliveira, autor da primeira gramática da língua portuguesa, aparece 61 vezes o gerúndio dos brasileiros – e nenhuma vez o infinitivo gerundivo dos lusitanos. Estudos comparativos mostram que os portugueses começaram a usar o infinitivo gerundivo no fim do século XIX e sua aplicação se consolidou na primeira metade do século passado (veja quadro). É coisa recente, portanto. Um trabalho da estudiosa Núbia Mothé, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que os portugueses empregam a nova forma mais na língua falada do que na escrita e seu uso é mais disseminado entre jovens. Comparando diálogos das décadas de 70 e 90, Mothé descobriu que o infinitivo gerundivo aparece na boca de 89% dos portugueses de 25 a 35 anos. Entre os de 36 a 55 anos, o porcentual cai para 65%. E fica em 55% entre os que têm mais de 56 anos. Isso também significa que em Portugal, como no Brasil, se usam as duas formas. A diferença é que preferimos a antiga – e eles, a nova. "O português brasileiro é que usa a forma dita clássica no idioma. O que está em jogo é a antiga crença de que a língua portuguesa pertence a Portugal e que, portanto, eles a usam melhor do que nós", diz Mothé. Como todo idioma vivo, o português, em terras brasileiras, portuguesas ou africanas, está em permanente mudança – algumas coloridas e singelas, outras espinhosas e obtusas. A influência do escravo africano no português do Brasil é notória. Em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre, numa das passagens mais belas do seu clássico, diz que a negra que habitava a casa-grande como cozinheira ou babá fez "com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo". Freyre também informa que os escravos africanos tiveram uma influência semelhante no francês das Antilhas ("adocicaram o francês, tirando-lhe o fanhoso antipático, os rr zangados") e no inglês do sul dos Estados Unidos ("deram ao ranger das sílabas ásperas do inglês uma brandura oleosa"). Miguel de Unamuno, escritor espanhol da virada do século XIX para o XX, dizia que o português é como "o espanhol sem ossos". A imagem traduz a superioridade sonora do português sobre o espanhol quando se trata de suavidade melódica. Pode-se supor que faltou a Unamuno originalidade na sua definição, já que a mesma imagem de uma "língua sem ossos" foi usada pelo alemão Thomas Mann para falar do russo – algo que talvez também não fosse muito original tendo em vista que o próprio Leon Tolstoi, o gigante romancista, admitira, ainda antes de escrever Anna Karenina, que o russo literário "não tinha ossos". Fazia-o em tom crítico, porém. Ainda que a idéia de uma língua desossada seja copiada de um escritor pelo outro, é uma definição exemplar para o português, sobretudo o falado no Brasil. Depois que as negras amaciaram nosso idioma com seus dengos e cafunés, com seus quitutes e quindins – todas essas palavras de origem africana –, Eça de Queiroz percebeu a diferença em relação ao seu português e disse que o idioma do Brasil era um "português com açúcar". Portanto, sem ossos e com açúcar. Quem há de desgostar de uma língua que se fala sem a rigidez dos ossos e com a doçura do açúcar? Quem há de rejeitar uma língua cujas palavras se dissolvem na boca? São variações que a vida nos trouxe, e, como num darwinismo lingüístico, as que ajudam uma língua a sobreviver e enriquecem suas formas de expressão acabam sendo incorporadas. "Quando uma forma lingüística atende a uma necessidade de comunicação, ela se difunde", explica José Luiz Fiorin, professor de lingüística da Universidade de São Paulo. Eis o caso do gerundismo. Os operadores de telemarketing descobriram que era útil. Porque soa como uma forma polida de falar, tal como o futuro do pretérito é usado por quem quer ser gentil, e dá uma idéia de descompromisso e desobrigação: "vou estar enviando" não é tão afirmativo quanto "vou enviar". "Quando ouvimos isso, interpretamos que não existe nenhum comprometimento, por parte do falante, de que a ação vai ser levada a cabo", diz a professora Ana Paula Scher, da Universidade de São Paulo, autora de um trabalho sobre o tema junto com a professora Evani Viotti. Ana Paula completa: "É uma estratégia adotada por quem não tem poder de decisão". Isso explica por que o gerundismo é tão irritante. Quando o ouvimos, já intuímos que estamos sendo embromados. Explica, também, por que ele é tão usado por gente que não tem a palavra final, como os operadores de telemarketing. E, por fim, explica por que o edital do governador do Distrito Federal não foi publicado até hoje. O problema não está no gerúndio. Está nos funcionários que cedem à burocracia e nunca se empenham para concluir o que começaram. Se deixarmos o gerúndio em paz, mas criarmos um ambiente em que todos firmem compromissos sólidos (dos operadores de telemarketing aos funcionários públicos de Brasília), a língua voltará a soar doce e mole – e as coisas, no Brasil, a começar pelo ensino de português nas escolas, vão funcionar. |