Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


11-04-2020

ASSIM MORREM AS DEMOCRACIAS - Bárbara Reis


ENTREVISTA

ASSIM MORREM AS DEMOCRACIAS

Bárbara ReisBárbara Reis 

 

 

 

11 de Abril de 2020

«O cientista político Daniel Ziblatt, professor na Universidade de Harvard e co-autor do livro Como Morrem as Democracias (com Steven Levitsky, edição Vogais) — recomendado pelo ex-Presidente Barack Obama como um dos melhores livros de 2018 — foi apanhado pela pandemia da covid-19 em Berlim, onde está a terminar um ano sabático em parte dedicado a conversar com políticos alemães. É da Alemanha que observa a pandemia a espalhar-se pelo mundo, “colado à televisão e aos jornais”. Em 2018, Ziblatt defendeu que, com Donald Trump na Casa Branca, a democracia norte-americana estava em perigo e avisou: as democracias já não caem com golpes e revoluções, mas com “passinhos de bebé” que destroem as instituições pouco a pouco.

Dois anos depois, o professor observa a reacção dos EUA à pandemia da covid-19 com dois sentimentos: espanto e pessimismo. Há 20 anos a estudar as democracias europeias, Ziblatt alerta para os sinais que levam à morte das democracias e recomenda olharmos para a Hungria: “Viktor Orbán teve dez anos para desmantelar as instituições democráticas. Trump teve quatro. Mas ele está a atacar as instituições democráticas dos EUA todos os dias e, lentamente, está a desmantelá-las. Se as coisas não mudarem, essa é a tendência dos EUA.” Uma breve entrevista telefónica por WhatsApp, com o som de crianças ao fundo.

Disse estar surpreendido com o que se passa nos EUA. O que é que o surpreende?
Duas coisas. A resposta parece estar a ser muito incompetente, e a eficácia dos estados e a taxa de infectados e mortos parecem estar fora de controlo. Isso reflecte a intrusão e empoderamento do populismo de direita. Os populistas de direita não confiam nos peritos, não confiam na ciência, não acreditam que os políticos saibam governar. Coloco esta hipótese: a ineficácia vem do empoderamento do populismo de direita. O mesmo se passa no Brasil, com [Jair] Bolsonaro.

A segunda observação tem a ver com o que isto significa para a democracia. Trump tem estado bastante passivo perante a crise e isso é surpreendente. Em regra, os políticos com tendências autoritárias aproveitam-se das crises para reforçar e consolidar o seu poder, mas Trump está passivo e não está a tentar fazer isso. Pelo contrário: a nível federal, a mensagem que passa é: “Deixem os estados tratar disto.” A questão interessante é perceber por que é que isso está a acontecer, porque é que ele está tão passivo. As razões são muito diferentes das de Viktor Orbán, na Hungria, que aproveitou a crise para consolidar o seu poder.

Para Trump seria difícil fazer o mesmo.
Trump enfrenta mais limitações: tem uma oposição muito mais forte, instituições federais que o limitam — ele passa tranquilamente a responsabilidade para os estados, evitando ser criticado pelo que correr mal — e, felizmente, é menos competente do que Orbán como autoritário. São três grandes diferenças.

Crises como esta são uma oportunidade para os autoritários, mas também expõem o estado das democracias. A Hungria já era muito autoritária e a pandemia empurrou as coisas. Se compararmos os EUA e a Hungria, as coisas estão melhor nos EUA quando pensamos nas instituições democráticas, mas nos meus momentos mais pessimistas penso que comparar os EUA com a Hungria é como comparar o momento em que Trump disse em Fevereiro: “Bom, só temos 15 casos, a nossa situação é muito diferente da da China, olhem para o número de casos na China...”.

Era uma percepção errada da pandemia, pois os EUA estavam apenas numa fase inicial da crise. Orbán teve dez anos para desmantelar as instituições democráticas e Trump teve quatro. Mas Trump está a atacar as instituições democráticas dos EUA todos os dias e, lentamente, está a desmantelá-las. Onde é que isto vai levar? Se as coisas não mudarem, a tendência dos EUA é fazerem o caminho da Hungria.

Se Trump estivesse há mais anos no poder, estaria a fazer o mesmo que Orbán?
Sim. Nestes quatro anos, Trump fez muito mal às instituições democráticas dos EUA. Trump está a enfraquecer o Estado de Direito, a enfraquecer as instituições democráticas, a enfraquecer os serviços secretos — acaba de despedir o inspector-geral dos serviços secretos [Michael Atkinson], crítico durante o impeachment.

Trump está a fazer o que Orbán fez na Hungria: destruir a democracia aos poucos, lentamente, bocado a bocado. Os EUA aguentam isto, porque são uma democracia antiga e sólida. Mas com o tempo, isto tem um efeito cumulativo. É como as calhas nas fachadas das casas por onde escorre a água da chuva: se não as repararmos, enferrujam. Pensamos: “Isto não tem grande importância, só está um bocadinho estragado” e não ligamos. Mas no momento em que surge uma crise, dizemos: “Isto estava a apodrecer há dez anos.” E cai tudo por ali abaixo. É isso que está a acontecer na Hungria: há dez anos que as instituições são desmanteladas e foi fácil para Orbán anunciar, da noite para o dia, que vai governar por decreto. Nos EUA podemos estar no início disso.

Ao comparar de forma tão directa as democracias norte-americana e húngara está a dizer que é real a possibilidade de os EUA tornarem-se uma “democracia iliberal”?
Muitas coisas teriam de mudar para os EUA acabarem como a Hungria. Os EUA têm uma oposição democrática mais forte, instituições democráticas mais fortes, um sistema de pesos e contrapesos melhor. Mas é uma possibilidade real ir nessa direcção. Não estou a dizer que Trump é incapaz de o fazer, nem estou a dizer que vai acontecer. Estou a dizer que esta é a direcção que o país está a tomar. Atacar as instituições democráticas diariamente tem efeitos no sistema. Estes são sinais de alerta que nos dizem o que pode vir a acontecer. Espero e desejo que os EUA não acabem como a Hungria. Mas é o que está a começar a acontecer. Estamos longe da Hungria e não sabemos qual vai ser o resultado final, mas temos de ter consciência de que é essa a direcção que estamos a tomar.

No livro Como Morrem as Democracias fizeram o teste do autoritarismo a Trump. Que resultado teria o Presidente se o testassem hoje?

O teste dos instintos autoritários deu positivo para Donald Trump — tem pré-disposição para atacar os jornalistas, para considerar os opositores ilegítimos, para questionar a legitimidade das eleições e para tolerar a violência em comícios eleitorais. Essas são as características de um líder com instintos autoritários. Desde que assumiu o cargo, Trump tem sido tão autoritário quanto o previsto, embora os danos tenham sido limitados pelas instituições políticas.

A atitude inicial de desvalorização, quase gozo, em relação à covid-19, vai prejudicá-lo politicamente?
Trump está mais fraco agora do que estava antes de a crise rebentar. Com a crise económica que deveremos ter a seguir, vai tornar-se num líder ainda mais fraco. Mas até um líder fraco pode destruir as instituições. Estava mais optimista há uns dias, mas depois de ver que Trump continua, em plena crise, a atacar a independência das instituições neutrais, estou mais pessimista. Trump pode perfeitamente perder as eleições em Novembro. Uma economia fraca é sempre má para os incumbentes. Há um risco a curto prazo e um risco a longo prazo: a pandemia em si cria menos riscos para a democracia, mas a longo prazo, é um risco maior. É o longo prazo da pandemia que me deixa nervoso, por prolongar o ataque às instituições.

Sobre os apoiantes de Trump: vê sinais de que, com a pandemia, prefeririam um Presidente com outro perfil?
O sistema político americano é muito polarizado. As sondagens mostram que os republicanos estão menos preocupados com o coronavírus do que os democratas. Os republicanos defendem que deveriam ser tomadas medidas menos drásticas do que os democratas. A interpretação de uma ameaça que é real é ofuscada por uma lente partidária. O resultado é que Trump continua a ser bastante popular entre os seus apoiantes e a sua taxa de aprovação subiu desde a pandemia, e está nos 49%, talvez a mais alta de sempre. Mas em tempos de crise é comum a popularidade dos Presidentes subir e a popularidade de Trump subiu só uns pontos percentuais.

Se compararmos com as taxas de popularidade de vários governadores, hoje, vemos que a subida de Trump foi muito pequena. E se pensarmos noutros Presidentes que enfrentaram outras crises — como Jimmy Carter e a crise dos reféns no Irão ou George W. Bush e o 11 de Setembro de 2001 — esta subida de Trump foi muito pequena.

George W. Bush, com o 11 de Setembro de 2001, chegou aos 90%.
Sim. Trump está nos 49%. E ainda não entrámos em crise económica. Quando a crise chegar aos eleitores, a popularidade vai baixar mais. Por isso, as hipóteses de Trump ser reeleito são hoje mais reduzidas do que antes da pandemia. Mas a eleição será renhida. Uma das questões em aberto é como vão ser as eleições se a pandemia continuar ou regressar no Outono. Há neste momento um debate intenso sobre como fazer as eleições se se está a dizer às pessoas para ficarem em casa. Os democratas estão a pressionar para aumentar o financiamento público para envio de boletins de voto por correio num cenário de eleições em pandemia, mas o Presidente já disse que não gosta da ideia. A razão é óbvia: em geral, os democratas beneficiam quando a afluência às urnas é alta. Penso que as eleições vão acontecer, mas é possível que a afluência às urnas seja muito menor — o que beneficia Trump.

Como é que vai ser a campanha?
A convenção democrata foi adiada para Agosto e Joe Biden, o candidato democrata mais provável, não pode ir para a rua falar com pessoas e como não é governador, não dá conferências de imprensa diárias sobre a pandemia. O que faz é dar entrevistas na cave da sua casa, onde tem um escritório, com um fundo onde se vê uma bandeira e prateleiras de livros. Biden tenta ter visibilidade, mas dados os constrangimentos, não tem uma plataforma para fazer campanha. Não poder fazer campanha eleitoral é uma limitação da democracia.

Se os candidatos não puderem fazer campanha, seria a favor do adiamento das eleições?
Não. Sou contra qualquer adiamento das eleições. Nenhum dos lados pode fazer campanha. Claro que Donald Trump tem mais palco, é o Presidente, mas é importante que o processo político avance. Uma coisa interessante do sistema americano é o facto de as eleições dependerem dos estados. O Governo federal não organiza as eleições. Cabe a cada estado, cada governador, cada secretário de estado estadual organizar as eleições no seu estado. Formalmente, o Presidente não as pode cancelar. Isso é bom para a democracia.

Mas se um governador republicano ou um secretário de estado local quiser ajudar Trump, pode fazê-lo: reduz o número de mesas de voto, limita o número de pessoas que podem estar em cada mesa de voto ao mesmo tempo e outras medidas que afastem as pessoas das eleições e reduzam a afluência às urnas, pois é isso que ajudará Trump. Isso pode acontecer nos estados “roxos”, os que podem ir para azul [democratas] ou vermelho [republicanos].

Que outras mudanças antecipa na política americana pós-pandemia?
Há uma pergunta que se aplica a todos: esta crise transforma tudo ou vamos regressar ao status quo? Uma área em que imagino uma mudança é na visão que as pessoas têm sobre se os EUA devem ter um sistema de saúde universal como muitos países europeus. Esta crise mostrou que é necessário mais investimento na saúde pública.

Mas também é possível que, a seguir, tudo volte a ser como dantes. O mundo muda enquanto dura a crise, mas pode voltar ao normal quando a vida voltar ao normal. É uma pergunta em aberto. Vai depender da narrativa da pandemia. Que história vão os historiadores e os jornalistas contar? Nos EUA, a história deverá ser sobre a incapacidade das instituições para enfrentar a crise, a falta de equipamento, a falta de testes até para quem está com sintomas.»

BÁRBARA REIS

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Bárbara Reis | Redactora principal

“Trump está a fazer o mesmo que Orbán: destruir a democracia aos poucos”

 

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