07-01-2020O jantar dos corvos marinhos João Gago da CâmaraO jantar dos corvos marinhosJOÃO GAGO DA CÂMARA Jornalista e Escritor
D.R. Quando escrevo estas linhas, escrevo-as dificilmente contra mim. Não me sinto bem a depreciar os meus. Quem se sentirá?! E os meus, sem exceção, são toda a gente de todas as ilhas Não estive lá, mas apeteceu-me estar, que mais não fosse para ajudar a compor melhor a sala. E Raúl Brandão, o autor de As Ilhas Desconhecidas, do tempo em que na pequena ilha dos corvos marinhos só o padre andava calçado, julgo que, estando ainda por aqui, gostosamente me faria companhia na alcatra presidencial. Na noite atlântica invernosa, do último dia do ano passado, o ambiente no ginásio de uma escola de 50 alunos e de 20 professores, que simultaneamente é básica e secundária, só conseguiu aquecer face ao bafo de escassas 130 almas aparecidas de entre 430 habitantes. E quarenta eram jornalistas. No recinto escolar, o jantar deste presidente foi, como seria expetável, generosamente oferecido pelo Estado, tal como o havia sido o do presidente Soares, realizado curiosamente também num dia 31, mas do mês de maio de 1989. Esse jantar trouxe então a terreiro a população toda. Era verão, estava calor, a noite apresentava-se cálida e as ruas estavam cheias de música e de mesas com manjares. Era festa. Mas no Corvo o verão e o calor são tão bem vindos quanto a tempestade gélida invernal, quando estamos em terras de baleação, de gente musculada e valente, que, desde há muitos séculos, arrostam contra ondulações perpétuas. Mais ainda quando são visados na sua lonjura e isolamento pelo mais alto magistrado da nação. O que se passou na mente da maioria do povo corvino – permito-me questionar – para se deixar ficar em casa após Marcelo andar à mercê de turbulências de cúmulo-nimbos de uma superfície frontal fria, entregando-se, cega e corajosamente, à eficácia da Força Aérea Portuguesa? Deixou a família – repare-se – para poder passar o ano no Corvo! Manipulação interna por forças de protesto face às dificuldades na chegada de géneros alimentícios à ilha, situação que, desde o inditoso furacão Lorenzo, ainda não está cem por cento normalizada? Foi comodismo, foi ingratidão, foi falta de consideração? O que se passou, com efeito, para acontecer essa desertificação no tão propalado jantar presidencial? D.R. A dada altura, surgiu, desajeitadamente a trompicar, alguém pretendendo justificar o injustificável, quando lançou para cima da estupefação geral a hipótese de haver pessoas de luto por nove mortes de familiares acontecidas no decorrer do ano findo. É que nem aí se entenderia a não comparência de 310 habitantes ao jantar do presidente, que é muita gente para uma população manifestamente diminuta. Eram todos familiares dos nove falecidos? Impossível. Quando escrevo estas linhas, escrevo-as dificilmente contra mim. Não me sinto bem a depreciar os meus. Quem se sentirá? E os meus, sem exceção, são toda a gente de todas as ilhas. Permitam-me recordar o quanto exaltei, dentro do melhor que soube e pude, os nossos, os meus, de Santa Maria às Flores, na última Visão especial Açores. Houve falta de sentido de oportunidade numa altura em que era suposto haver outra perspicácia no aproveitamento político que o evento proporcionava; ignorou-se um momento de ouro para serem enumeradas necessidades prementes da ilha, quando o povo e responsáveis estariam, privilegiadamente, olhos nos olhos, com Marcelo. E não se apelou a Vasco Cordeiro por mais comprometimento, com o presidente açoriano a metro e meio de distância do famoso espírito crítico do Presidente da República! A ilha, por ser pequena, detém em si uma atratividade única que as outras parcelas regionais não têm, por serem maiores, característica que também foi desperdiçada. Nessa altura extraordinariamente favorável, crucial na história do Corvo, só com paralelo na visita de Soares há trinta anos atrás, são os corvinos que, de modo próprio, extraem o pionese do mapa açoriano do bem receber. E que mais fazer senão humildemente pedir desculpa! D.R. Não se trata assim um Presidente da República, que, atente-se, é suprapartidário e só nessa qualidade deverá ser tratado. Quando se aprenderá de uma vez por todas a diferenciá-lo e a protegê-lo de guerrilhas partidárias intestinas e de outras minudências? Não é assim que se trata a República! Quão atuais persistem as palavras de Raúl Brandão, escritas em As Ilhas desconhecidas, e que, finalizando, lamentavelmente evoco: “Olho para a ilha descarnada pelo vento, tão forte de Inverno que o sino tange sozinho, e sinto-me como nunca me senti, isolado no mundo. Que vim eu aqui fazer? Foi esta pedra isolada no mar com alguns seres agarrados às leiras que me levou à viagem? Foi este resto de vulcão, sem paisagem nem beleza, que me trouxe? Mas aqui não há nada que ver! Almas tão desencarnadas como o penedo e uma vida impossível noutro mundo que não seja este mundo arredado.” Palavras-chave:
Marcelo Rebelo de SousaAçoresCrónica
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