Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


12-11-2019

Gente para adiar o fim do mundo (porque não há planeta B) - Alexandra Lucas Coelho


A opinião de  Alexandra Lucas Coelho

Índios que pela primeira vez tomaram a palavra. Jovens que pela primeira vez tomaram as ruas. Para aprender é preciso querer aprender: com eles.

1. Grande parte do mundo corre para o fim do mundo. Mas há ideias que o adiam, pessoas que resistem há séculos. Algumas acabam de atravessar o Atlântico, trazendo o que só elas dizem. São indígenas de diferentes lugares do Brasil, realizadores, activistas, gente que tomou a imagem e tomou a palavra. Hoje, última sexta-feira do Inverno, coincidiram com a histórica greve dos jovens pelo clima: pelo futuro. E este crochê cósmico não fica por aqui.

2. Os povos ameríndios conhecem o apocalipse. Viveram-no em 1500, quando os brancos chegaram, com doenças e armas. Se alguém está preparado para o fim do mundo tal como o conhecemos, são eles, costuma lembrar o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, um dos mais influentes pensadores brasileiros. Os índios resistiram (ou re-existiram) à chegada mortal dos brancos e saberão viver com a natureza. Já para os brancos, difícil imaginar a vida sem bateria.
Há três semanas, Viveiros veio abrir um ciclo dedicado ao Pensamento Ameríndio, no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), dirigido por Nuno Faria. A palestra dele, totalmente lotada num sábado de sol, foi transmitida em streaming, e pode ser recuperada online. E as fotografias que Viveiros tirou ao longo de décadas com povos indígenas continuam lá, na vasta mostra “Variações do Corpo Selvagem”, com curadoria de Veronica Stigger e Eduardo Sterzi. Em diálogo com três outras exposições, articuladas por Nuno Faria, “Carõ — Multidões da Floresta”, de João Salaviza e Renée Nader Messora; “Clareira”, de Manuel Rosa; e “A Morte de Ubu”, de João Louro. A que se acrescenta uma mostra de cinema dias 20- 21 de Março, e um par de conferências até Abril. Tudo em Guimarães.

A propósito de Salaviza e Messora, “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, o filme que eles fizeram com os krahô do cerrado brasileiro (e sobre o qual escrevi antes da estreia em Cannes), está desde ontem em exibição nas salas portuguesas, depois de um extenso périplo mundial, com vários prémios pelo caminho.

3. Entretanto, em Lisboa começou quarta-feira a mostra de cinema “Ameríndia”, organizada por um colectivo transatlântico que se foi juntando desde 2016. Filmes feitos por homens e mulheres indígenas do Brasil, para ver e debater na Gulbenkian. Coube a Ailton Krenak, um dos grandes líderes indígenas, também co-curador da mostra, anteceder as sessões com uma palestra no ICS intitulada “Ideias para adiar o fim do mundo”. Uma dessas ideias, bem indígena, será brincar, e Krenak aplicou-a, desde subverter o título como a primeira coisa que lhe viera à cabeça, à sua própria situação ali, rodeado de pesquisadores, na antiga sede do poder colonial.

Nascido na região do Rio Doce, em Minas Gerais, onde a mineração criminosa da Vale continua a exterminar gente, bichos, plantas e rio, Krenak é uma referência da Aliança dos Povos da Floresta, que na década de 1980 juntou não apenas indígenas como comunidades ribeirinhas em geral, mestiços, caboclos, mistura de índio com branco ou negro. Já na corrente década, Krenak foi uma das figuras da Aldeia SP, bienal de cinema indígena em São Paulo, fruto de projectos como Vídeo nas Aldeias, em que a câmara se tornou um importante recurso indígena. Povos que não são da escrita, que por isso não estão na História com a sua própria versão, e que encontram no cinema um instrumento potenciador, espalhando fala e imagem, como a luz ao bater num espelho. Assim estava Krenak diante da plateia, terça-feira no ICS, pequeno espelho oval ao peito.
Resistiu anos a vir cá, por exemplo quando o convidaram para os “500 anos da travessia do Cabral”. Seria “uma festa para celebrar a invasão”, pensou. “Mas não transformei isso numa rixa.” Em 2017, tal como Viveiros de Castro, falou no Teatro Maria Matos no contexto de Lisboa Capital Iberoamericana da Cultura, sessões que para muita gente foram uma revelação. Portal de outro pensamento, retomado agora por Krenak.

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