09-09-2019O meu Ajudante Etnólogo - Francisco G. AmorimO meu Ajudante Etnólogo
Já escrevi várias vezes, talvez até demais, que em 1954 comecei a minha vida em África, por Benguela. Fui trabalhar com máquinas agrícolas e, responsável pela metade sul de Angola, tinha o meu local de trabalho com loja e armazém. Eu ficava sozinho na loja, com exposição de algumas máquinas. Lá dentro o encarregado das peças, Mário Brás, que tinha um profundo asco ao Salazar e queria ir embora para a Rússia(!), e um ajudante, na altura chamados serventes, que era uma figura de legenda. Joaquim (ou António? Já não tenho a certeza do seu nome, infelizmente.). A personificação da simplicidade e boa vontade.
Pouco tempo depois de chegar a Angola fui para a África do Sul, por duas semanas, fazer um estágio na fábrica local da Massey Harris, e como já tinha alugado casa deixei-a entregue ao Joaquim que lá dormia todas as noites guardando as “preciosidades” do chefe. No final do estágio a fábrica entregou a cada um um diploma, constando que tinha feito o estágio, de tal a tal dia, assinado por dois diretores, e autenticado, como era de praxe, com um selo de lacre e duas fitinhas de gorgorão (agora já sei mais de coisas femininas, viram?) nas cores vermelha e amarela, as cores das máquinas. Muito bonitinho. Um mês depois do regresso, da sede em Luanda o patrão mandou dizer-me que devia emoldurar o diploma e colocá-lo na loja para valorizar a nossa organização perante os clientes. Tudo bem. Em casa dei volta a tudo, que era pouco o que tínhamos no princípio da nossa vida, mas o tal de diploma, aparecer é que nada. Todos os dias, depois do trabalho ia lá a casa o Joaquim, para ajudar a arrumar e limpar a casa, ganhando assim mais um trocado. O Joaquim era um tipo sensacional. O departamento de máquinas agrícolas onde eu trabalhava, tinha na frente, a loja onde se expunha um trator, duas ou três alfaias e a minha mesa. Ao fundo, uma passagem para o armazém de peças, e por fim o pátio, coberto, onde se fazia algum tipo de assistência técnica, abriam os caixotes que vinham das fábricas, se montavam as máquinas e estocavam os restantes equipamentos que não ficavam em exposição. O Joaquim era o mais humilde dos empregados. Fazia a limpeza do stand e das máquinas, ajudava a carregar e descarregar equipamento, e na sua montagem: segura aqui, cuata aí, cabarera-ó-catita, eram os seus conhecimentos de mecânica! De vez em quando eu chamava o Joaquim, que pressuroso aparecia num instante. - Joaquim vai lá dentro buscar... Nem acabava a frase já o Joaquim desaparecia, solícito, para ir buscar... é verdade, o quê? Logo a seguir, ar cabisbaixo, mãos atrás das costas segurando a primeira coisa que lhe aparecera, voltava para ouvir o resto do recado, porque só depois de sair correndo é que se dera conta de nem ter ouvido o que tinha que ir fazer. Eu tentava adivinhar o que ele trazia escondido nas mãos, atrás das costas, para o ajudar a sair daquele difícil transe. - Joaquim! O que é que eu mandei buscar? Ele gaguejava, olhava para mim com cara de criança que acabou de meter o dedo no apetitoso bolo da vovó, reservado para as visitas, e não se atrevia a falar. Quando eu conseguia ver o que ele apanhara, por exemplo, um martelo, dizia-lhe: - Joaquim, eu preciso é de um martelo. Abria um sorriso maior do que a Praia Morena. (isto passa-se em Benguela, e como aquela praia sorria...) enchia o peito de ar, ufano e feliz, e entregava-me o martelo. Se naquele momento nem sequer pensava em promoção, devia sentir-se o Soba dos Recados! Depois de receber o martelo e pousá-lo no chão, já que não precisava dele para nada, dizia-lhe: - Agora, atenção, ouve bem devagar: vai lá dentro e traz-me, sei lá, uma chave de fendas! Assim o Joaquim cumpria diligente e humilde o seu dever! Foi ele que me ajudou a desencaixotar os trastes, que saídos de Lisboa, em Angola viraram imbambas ou bicuatas,. Com todo o cuidado, os dois fomos desembrulhando livros, pratos, copos e outras coisas bonitinhas que é costume dar-se de presente de casamento, e no meio de tudo isso surgiram uns pequenos bustos, uma dúzia de centímetros de altura, que o meu pai terá obtido na Exposição Colonial do Porto em 1934. Quando desembrulhei o primeiro deles o Joaquim, arregalou os olhos, fez um ar de espanto acompanhado do clássico Ha! Ha!, segurou numa das estatuetas, olhou, remirou e disse: - Handá. - O quê? - Handá, Chipungo Recém chegado, eu, não fazia a menor idéia do que ele queria dizer com Handá, mas por via das dúvidas escrevi logo no pé do busto o que ouvi. Desembrulhei outro. O mesmo espanto, a mesma rápida análise: - Quilengues. Etnia Handá- Quipungo Etnia Quilengues Musso *
E mais um, Cubal, e ainda um busto feminino que escrevi como me pareceu ouvir, Ganguera. Ganguela. Só não reconheceu de onde seria uma outra cabeça de mulher, nem eu, que nada sei de etnografia, nem de um homem que mais tarde não foi difícil identificar como timorense.
Etnia Cuvale Mulher Nhanheca-Humbe
Vim mais tarde a descobrir (?) que a mulher deve ser Ambó-Cuanhama e o homem um timorense.
Ambó – Cuanhama Timorense
Bom a conversa está muito boa, mas e o diploma? Cadê o diploma? É verdade. Depois de me certificar que não o encontrava, conclui que só o Joaquim saberia do seu desaparecimento, visto ser a única pessoa que tinha a chave de nossa casa, quando tomou conta dela todos os dias sem falhar um único, durante cerca de dois meses, desde que cheguei a Benguela sozinho até que voltei re-casado após o regresso da África do Sul, donde nunca, nunca, tirou uma migalha, e além de mim e da jovem esposa só ele entrava no quarto que tinha espalhado no chão um monte de coisas, como louças, livros, bibelôs, etc. Não só não tínhamos móveis suficientes onde os guardar, como aguardaram a vinda da dona da casa para arrumar o que pudesse e a seu gosto. Ali, algures, no chão, por cima daquela tralha, daquela, bagulhada, tinha sido guardado o diploma. O Joaquim quando lhe falei nisso fez-se vermelho (é verdade, sim, os pretos também coram, lá por terem a pele escura, vê-se muito bem) e quase jurou que não tinha visto o bendito diploma. - Joaquim! Eu quero esse diploma aqui, amanhã! No amanhã o diploma estava lá! Um pouco amarrotado com a viagem de ida e volta até casa do Joaquim, claro, mas... o lacre e as fitinhas não regressaram! Aquelas fitinhas e o lacre foram mais fortes do que a resistência do Joaquim contra tentações! Pratos, copos e outros quejandos ele conhecia bem, havia visto muitos toda a sua vida, mas um papel com aquele enfeite bonito... Resultado: não se emoldurou o diploma, não voltei a falar nele ao pobre homem que caíra naquela terrível tentação, guardei-o, amarrotado e sujo por muito tempo porque a história me enternecia, e por culpa agora das nossas muitas outras viagens o diploma... sumiu! Ficou a saudade. Grande Joaquim! Saravá Joaquim!
N.- A história do Joaquim (ou António?) está no meu livro “Se as Minhas Imbambas Falassem”, 2000.
*Um dos casos mais interessantes das etnias e da ocupação de Angola deu-se precisamente em Quilengues. É sabido que a maioria do povo angola é de origem Bantu (um disparate de palavra visto que Bantu vem de ntu” (homem) e “ba” (plural) o que significa em língua daquela região, Ocidente de África, todos somos Bantu! Mas houve, séculos, ou muitos milénios atrás, também migrações da região nordeste de África, dos povos hamitas ou camitas, cujos caracteres antropomórficos são distintos dos Bantu: cabeça mais alongada (dolicocéfalos), lábios menores, outra cultura, etc. Em Quilengues se juntaram com seus gados e desde sempre convivem, bantus Quilengues-Humbe, e hamitas Quilengues-Muso, sem que jamais houvesse entre eles casamentos. E mais, as suas habitações também diferem: hamitas retangulares e bantus circulares. Se o meu amigo José Redinha, grande etnólogo de Angola, lesse isto, certamente mandaria puxar as minhas orelhas. Algo não estaria muito correto. Mas é do que me consigo recordar. Um abraço lá ... para o alto, José Redinha, meu amigo.
08/08/2019 Francisco G. Amorim
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