Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


17-08-2019

ROSA LUXEMBURGO (1871-1919) - UM RETRATO DE MULHER por Viriato Soromenho Marques - DN


 

«Estamos a deixar passar na Europa quase em branco o centenário do assassínio de Rosa Luxemburgo (1871-1919). É um esquecimento que diz mais sobre nós e o nosso tempo do que sobre a economista, ativista política, filósofa e muitas outras coisas, cujo lugar e grandeza peculiares estão bem protegidos numa vastíssima obra publicada, ainda que não suficientemente estudada.

Embora tenha vivido a maior parte da sua curta vida em Berlim, Rosa nasceu na Polónia russa, originária de uma família judia abastada, cedo se revelou cosmopolita e poliglota (incluindo um domínio perfeito do alemão, russo e polaco). Foi das primeiras mulheres doutoradas pela Universidade de Zurique, entregando-se desde os 15 anos a uma militância socialista, inspirada por um sentimento de perigo e urgência que a eclosão da I Guerra Mundial mostraria ser inteiramente justificado.

Muito pode ser dito sobre o brilhantismo intelectual de Rosa, sobre a sua liberdade de espírito, que a levou tanto a criticar Bernstein e Kautsky como Lenine e Trotsky, sobre a sua originalidade teórica, bem patente no livro A Acumulação do Capital (1913), que constitui uma verdadeira teoria da globalização, com os seus riscos catastróficos.

Contudo, aquilo que gostaria de destacar encontra-se na sua correspondência privada. Saliento, pela sua intensidade moral, uma carta escrita da prisão política de Breslau, perto do Natal de 1917, dirigida à sua amiga Sonia Liebknecht, mulher de Karl Liebknecht, que seria assassinado no mesmo dia de Rosa. Atrevo-me a dizer que do mesmo modo que o conceito de "natalidade" só poderia ter sido introduzido na filosofia por uma mulher (Hannah Arendt), também esta missiva, em que a reflexão sobre si mesma e sobre o mundo se combinam numa variação subtil entre alegria de viver e compaixão, só poderia ser fruto de uma poderosa, profunda e sensível alma de mulher. Destaco duas partes da carta. Na primeira, Rosa partilha com Sonia o que designa como a sua inexplicável "feliz embriaguez" (freudiger Rausch) de existir. Descreve as suas deambulações mentais, quando pelas 22.00 é obrigada a deitar-se, sem conseguir adormecer antes de madrugada. Até o som das botas do guarda lhe alimenta o júbilo de viver. A noite, escreve Rosa, mesmo na prisão, pode ser macia como o "veludo", se olharmos na perspetiva certa.

O final da carta ainda é mais tocante. Com uma escrita certeira e delicada, Rosa descreve o sofrimento de uma centena de búfalos, "troféus de guerra" trazidos da Roménia, usados como animais de tração. Narra a crueldade de um soldado, que chicoteia um desses animais até o fazer sangrar. Comove-se até às lágrimas, em face do olhar doce e agónico desse animal, que compara a uma criança espancada sem saber porquê.Inline image

 

No dia 15 de janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo, indefesa, seria assassinada à coronhada e a tiro, por ordem do capitão Pabst, no Hotel Eden, na famosa avenida berlinense Kurfurstendamm. O corpo de Rosa seria depois lançado ao Spree. Pabst morreu tranquilamente em 1970, aos 89 anos, sem nunca ter respondido pelos seus crimes.» (Viriato Soromenho Marques)

Um retrato de mulher

 

   
 

Um retrato de mulher

Estamos a deixar passar na Europa quase em branco o centenário do assassínio de Rosa Luxemburgo (1871-1919). É u...