Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


15-08-2019

Luanda: para lá do fim onde tudo começa - Rui Ramos


Rui Ramos  Inline image

3 de Agosto, 2019

Luanda não tem princípio nem fim. Sou do tempo da fronteira do asfalto que marcava a exclusão, do tempo das separações “raciais”, do tempo da prisão indígena no Zé Pirão, do tempo das rusgas do Poeira, do tempo do ataque do 4 de Fevereiro, do 15 de Março e da repressão sangrenta que se seguiu. Sou do tempo do 25 de Abril, dos massacres perpetrados pelos colonos mais reaccionários contra a população negra, sou do tempo da guerra de Luanda que marcou todo o ano de 1975.

Fotografia: DR

 

Mas também sou do tempo presente de Luanda e em nenhum outro local do mundo me sinto tão bem. Luanda é o íman que atrai tudo e todos, apaixonada e indiferente, sedutora, sensual, louca.
Luanda não tem princípio nem fim, como o mundo. Antigamente, acabava na Circunvalação, que ninguém hoje sabe o que é, depois chamaram-lhe “retunda” e hoje é um viaduto que liga a Boavista-Sambizanga aos bairros a Norte, Comarca e por aí fora, passando pelo bairro da Sonangol, Uíge, Sucanor, Vidrul...
Não conheço todos os becos, só alguns, porque ninguém conhece Luanda; Luanda é uma cobra que se move sempre, não tem forma e ninguém a controla senão os habitantes dos “guetos”.
Por todo o lado a população é muito jovem e as famílias muito extensas. As mulheres têm o papel social mais relevante, parideiras, não abandonam nunca os filhos, se bem que os desmamem precocemente, por questões culturais e por necessidade de trabalhar. Mas a mulher, apesar do seu papel social, é dominada pelo homem, apoiada pela própria família dela, que toma quase sempre a defesa masculina.
Luanda tem muitas almas, mistura de todas as gentes de toda a Angola e de um pouco de África. Tem a sua própria maneira de viver, autónoma, independente do poder do Estado, o habitante de Luanda não gosta de ouvir falar de “Estado”, tem alergia ao poder, porque o poder é do soba ou do soma, o irmão mais velho da mãe, e mais nada. Por todo o lado, começando já perto de Caxito e vindo para Cacuaco, Vidrul, Cerâmica, Ngoma, Sonangol, Belo Monte, Boa Esperança, Kalwenda, Catanas, Paraíso, Kikolo, Kwanzas, Boavista, Sambizanga, Rangel, Marçal, a infindáveis Viana, os Zangos intermináveis e enigmáticos, Luanda Sul, Cassenda II, Calemba, Samba, Bairro Azul, Rocha Pinto, Vila Flor, Morro Bento, Benfica, Palanca, Chicala I, Chicala II, Grafanil, Katinton, Congolenses, Dangereux, Catambor, Shabá, Prenda, Morro dos Veados e ainda há mais para lá… a paisagem é a mesma, parecem fotocópias desbotadas espalhando-se com a brisa morna, húmida e salgada da Ilha, hoje completamente descaracterizada.

Amontoados desde 1974

Toda a gente começou a amontoar-se a partir de 1974, quando a população do interior fugiu de Luanda via estação do Bungo em intermináveis filas e começou a aparecer uma outra população, estranha, com novos hábitos, que ocupou Luanda, os “regressados” do Zaíre, que iniciaram as vendas no chão dos passeios.
Nessa altura, o Kikolo ainda era uma zona verde, o Paraíso de Luanda, ainda recordo a linda e frondosa floresta do Kikolo, com rabos de junco e ratos de palmeira, que a tropa portuguesa destruiu para impedir a penetração de “terroristas”.
Foram sobretudo as guerras, as cruéis e sanguinárias guerras puseram tudo de pernas para o ar, nos anos 1980, as populações fugiam em massa do Planalto Central e vinham para os armazéns abandonados do Porto de Luanda, depois acomodaram-se no Kikolo. 
Do Norte vinham populações inteiras fixar-se na Sucanor (Sucata do Norte) e no bairro Uíge. Sem controlo. Sem qualquer plano urbanístico. Sem saneamento básico. De repente, de quinhentos mil, a grande metrópole passou para cinco milhões de pessoas amontoadas, dez milhões… um imenso contentor incontrolável.
Os velhos extinguiram-se, não existem mais. Em seu lugar, milhões de jovens levantam-se da terra vermelha, movendo-se como areia solta. Jovens com mães e jovens órfãos de pais falecidos ou vivos. Seres sem amor, sem um vislumbre de luz, correm para a cidade de asfalto para comerem a fome, que não se adia. A grande “cidade” é na verdade um extenso e esconso “musseque”, em todos os quintais há casebres e todos pagam renda, em todos os espaços as zungueiras guardam as suas mercadorias e pagam pela ocupação. Nas ruas dos ricos, milhares de rapazes controlam os espaços públicos, de rosto imóvel, subtraindo água de furos cirurgicamente feitos na rede da Epal.
Não há piedade nem solidariedade ou amor, há laços de necessidade porque a vida é muito dura, aqui tudo se paga, tudo tem um preço, nada se oferece. As crianças desmamadas entram no mundo adulto do funje de bombó ou de milho com folhas e muito sal e gatinham sozinhas, desde cedo muito sozinhas, na mente as primeiras palavras da mãe, “vou te batê”, homens e mulheres em miniatura fazem-se a si próprios não esperando ajuda de ninguém.
Os pais das crianças, dizem as mães, “viajaram”, isto é, fugiram, não educam nem cuidam dos filhos, é geral. Os homens são predadores sexuais, não dão prazer às mulheres, fecundam-nas, apenas, e as mulheres, sem medida de comparação, aceitam essa situação humilhante e degradante de submissão total.
Ir à escola é a maior ambição da criança de Luanda. Os pais vieram das províncias, fugidos da fome e da miséria, e querem, em especial as mães, dar uma vida melhor aos filhos. Mas em quase todos os bairros de Luanda escasseiam as escolas públicas. Há colégios privados e escolas comparticipadas às quais se devem pagar propinas e no dia 11 de cada mês os professores “xotam” os miúdos que não pagam.
Os becos, por todo o lado, os becos ladeados de casebres feitos de qualquer coisa, de tudo, panos, chapas, cartão, blocos, por todo o lado pedras a amparar os telhados de chapa, aqui vive gente, escondida, imóvel, espreitando o mundo. Nos becos não se circula de noite, os pobres assaltam os pobres, ninguém confia na Polícia. Quando um parente é preso, a família “cai” na esquadra indagando o preço da soltura e, em desespero, pede, pede, pede e quantas vezes consegue libertar um familiar assassino ou ladrão que volta ao bairro para continuar os seus ilícitos.

Nos bairros, tudo desarrumado

No “Quarenta” há lavras, a compra de terrenos é um problema, há sempre burladores por todo o lado que convencem os inocentes de que tudo está legal, mentem, a mentira em Luanda é uma escola e uma necessidade vital.
Nos “bairros”, a que ninguém chama “distrito urbano”, não há árvores, não há produção agrícola, não há indústria, tirando oficinas de reparação de tudo, oficinas de mobílias, até de robustos cadeirões.
Para lá de Cacuaco, na mais antiga Luanda, até para lá do Morro dos Veados, as casas não têm número de Polícia, apenas número da água e da luz, o controlo pertence a quem cobra facturas e não a quem deve garantir a segurança.
No Paraíso, penso que é lá, a ponte inacabada “Kavukila” está ali, feita e sem uso, porque não tem acessos, e ao lado crianças quase nuas e descalças brincam na lixeira, os pais inexistem.
Por todo o lado as crianças brincam com brinquedos de esgoto, de restos, com cães vadios cheios de pulgas e carraças que lhes mordem, meninos arranhando a coceira da pele seca do corpo com feridas, meninas com furúnculos por má nutrição. Já grávidas à saída dos dez. Neste universo que vou descobrindo, nenhum político se atreveu sequer a entrar muito menos a contactar, é outro povo, ali não se quer estar, suja, e os comités do partido estão tristes, só se reconhecem pela bandeira e pelas cores e em muitos lados as pessoas dizem-me tio não se vê presença de políticos, não vêm sujar seus sapatos nem respirar esta poeira, não lhes conhecemos. Os administradores raramente saem dos seus gabinetes climatizados.. Os outros, as oposições, tem quem me diga, “estão aí escondidos, a gente fica só a ver no nosso silêncio”.

Festas, porque tristezas não pagam kilapis

Mas como tristezas não pagam kilapis, o povo gosta de festas, o povo não poupa valores, hoje é sempre hoje, o amanhã é só avante! Então, esta cultura única recomenda que óbito seja sete dias com cerveja sempre a deslizar, vêm pessoas dos quilómetros, dos municípios, render homenagem ao falecido que nunca viram, muitos faltam aos empregos e justificam, os chefes compreendem, também estão nos óbitos. Tem de se conseguir dinheiro para o funeral, para o caixão, pede-se aqui e ali e ali, o morto não pode ficar desembrulhado.
As festas de apresentação do namorado à família da menina estão presentes por todo o lado, com tios vindos dos municípios e toda a vizinhança, pretexto para o consumo de largas dezenas de grades de cerveja. Mas não se fica por aí, filha é capital de investimento, se começa a namorar o rapaz tem de cumprir os “deveres”, Pedido, é imperativo, pode chegar a um milhão, o “noivo” se desfaz em pedidos de valores a tios e mais tios, a família da donzela escolhe as marcas da cerveja, vinho e até exige bombons. Em Luanda, os pobres e os ricos estão sempre a festejar algo. Mas os pobres abusam, pois não vivem à custa do OGE. Os casamentos são sempre dois dias, aluga-se salão para continuação e é pretexto para mais uma ostentação do que não se tem.
As famílias estão sempre reunidas, com cerveja, pinchos e “conchas” de frango, para falarem da gravidez das sobrinhas, da violência doméstica e quase sempre o homem sai por cima e a menina é “posta na ordem” pela própria família que, se a “vendeu”, lhe exige submissão ao malandro.
Neste emaranhado de vidas vindas de todo o lado, a dieta-base é a fome. Ninguém come, se pergunto aqui e ali o que comeram, respondem-me “chá” e algumas vezes “arroz branco com mais nada”. Fubas de bombó ou de milho parecem ser cada vez mais estranhas a este povo que se despersonalizou também na gastronomia e já nem sabe a diferença entre lambula e paieta.

Comércio

O comércio é o Deus dos guetos, está por todo o lado, quem manda são os estrangeiros eritreus, oeste-africanos, donos dos armazéns por grosso, vimo-los no Rocha Pinto, Morro Bento, Dangereux, Benfica, Congolenses, vendem de tudo, tudo importado, Angola não produz nada, até leite “Bom Dia” já se importa, ninguém sabe de onde vem e a nossa galinha rija também é importada congelada.
À roda dos armazéns dezenas de milhares de rapazes imóveis oferecem o seu serviço. Vieram de Benguela, do Huambo, daqui e dali, muito jovens, sozinhos mas vivendo em grupo e dormindo em capoeiras, inteligentíssimos, se perdendo para a vida, carregam sacos, carregam tudo, menos os livros que deviam. 
O miúdo Paizinho nos olha, vistas turvas, sem além, vindo de Benguela, sozinho na selva de poeira, como rato roendo o futuro. Muitos milhares de outros abundam, de rosto imóvel, indormidos, nas vias principais, por entre os carros, tentando vender qualquer coisa importada que adquiriram nos armazéns.
Lá longe estão as centralidades e os condomínios fechados, ficção mental, alucinação, grito que ficou por gritar; uma Angola proibida, onde outras alucinações acontecem, uma mentira para a qual o povo só olha.

Como um avultado de mortos-vivos

Não há produção, como se reproduz a vida económica? Com comércio de importação, de “frescos” congelados, de sacos de fuba importada, de bebidas importadas, de bolachas importadas de Portugal, de peças de carro importadas, importar é a palavra de ordem em Luanda.
Onde mora esta gente? Ninguém sabe, é segredo. Mas levaram-me a ver o interior desses “palácios do povo”. Os meus olhos choraram. Como é possível? Muitas galinhas vivem melhor. Tudo desarrumado e amontoado, como as vidas, colchões no chão, chapas, cartões, panos, isto não é habitação, isto é desumanidade, raparigas lindas, lindas, bem compostas, bem alisadas, vivem em compartimentos exíguos sem janelas, sem chão de cimento, com mãe, irmãos, primos, tios, tias. Num metro quadrado cabem 20 vidas, como se chegou a isto?
Em Cacuaco, vimos, a prostituição começa muito cedo, há zonas de influência, as mais novas ficam no Banco X, as mais adultas no Banco Y, à espera, vendendo-se por escassas centenas de kwanzas, que podem ser pagos no dia seguinte, porque não há empregos, não há caminhos nem rumos e a moral se desequilibrou, as raparigas aceitam tudo, dançar nuas em festas, "passa a patrulha", por copos de cerveja, cada vez mais jovens abraçando a vida do inaceitável, a depressão escondida e inexplicável instala-se... os suicídios...
Energia? O negócio dos generais, dizem-me, das Falas e das Faplas, têm o negócio dos petês com a Ende, nem sabem me explicar, eles é que fornecem a luz, rende milhões sem factura, dez mil em cada casebre, chega às 18h a luz murcha, fica metade, quando fica.
A água é outro grande negócio dos guetos e dos becos. Não há água. As mulheres acarretam na cabeça pesadas banheiras, sortudas porque o chafariz ainda deita e não estão a cobrar, ou compra-se água de qualidade duvidosa aos kaleluias, cem cada bidão e ainda se agradece o incómodo.
Para entrar nos bairros ou vamos de carro voando nos buracos, na lama e nos esgotos a céu aberto, ou vamos de moto-táxi, em alguns casos de candongueiro, mas os hiaces muitas vezes não aceitam entrar nos bairros, ficam-se pelas estradas. As viaturas não são eternas e as peças são muito caras. Não há transportes públicos dignos desse nome nos bairros de Luanda, o povo é como um amontoado de vivos-mortos, arrastando-se em todas as direcções, como respondendo a chamamentos, mas não, apenas tenta tratar da vida e conseguir valores para comer arroz, apanhar um "táxi", pagar a propina nos colégios ou nas faculdades ou o soro aplicado no centro de saúde para tratar a malária.

 

 

 

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