30-05-2019Uma língua afro-portuguesa em Bom Despacho, MG, BRUma língua afro-portuguesa em Bom Despacho, MG, BR 16-Mar-2008 Jacinto Guerra O escritor e professor Jacinto Guerra, natural de Bom Despacho, em Minas Gerais, no Brasil, e amigo de Aboim da Nóbrega, fez-nos chegar um ensaio da sua autoria, já publicado no Brasil, oferecende-nos a publicação no Portal de Aboim da Nóbrega. O ensaio, com o título "Uma língua afro-portuguesa em Bom Despacho", enquadra-se no lançamento, em Bom Despacho, neste ano de 2008, do Projecto Garimpeiro da Memória. O Museu da Cidade e o site Senhora do Sol estão a organizar e enriquecer um acervo comum de textos e outros documentos sobre a Língua da Tabatinga, a fim de preservar e desenvolver os estudos a respeito desta importante manifestação da cultura afro-luso-brasileira. Com base em pesquisa de campo e nos estudos da obra de Sônia Queiroz, Benício Cabral e Ivã Rodrigues organizaram um vocabulário do tabatinguês e remeteram-no ao Garimpeiro da Memória, valiosa contribuição que já integra o acervo do Museu da Cidade. Uma língua afro-portuguesa em Bom DespachoImagine o leitor que já estamos em 2014, com o Campeonato Mundial de Futebol, que teve sua abertura festiva no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Turistas do mundo inteiro visitam, primeiramente, a capital do País – e se encantam com a natureza do Planalto Central, visto do alto da belíssima Torre Niemeyer, orgulho do moderno patrimônio cultural do Brasil. No interior de Minas, um grupo de turistas chega a Bom Despacho e surpreende-se com as modernas placas bilíngües de orientação turística: Matriz de Nossa Senhora do Bom Despacho – Conjolo de Granjão; Setor Bancário – Conjolos de Ingura; Vila Militar – Conjolos de Viriango, além de outras palavras e expressões de uma língua estranha para os visitantes de vários países, mas familiar para o povo da cidade da Senhora do Sol. Mais adiante, apreciam um café-da-manhã ou pequeno-almoço, como se diz na França e em Portugal, saboreando os produtos Mavero, principalmente um queijo tipo Minas, fabricado em Bom Despacho, que não existe melhor em parte alguma do Brasil. Na Rua Tiradentes, ficam intrigados com o nome da Clínica Veterinária Cambuá. Mas foram portugueses de Évora e de Vila Verde, além de turistas de Paris, Londres e Buenos Aires, que ficaram mais curiosos em saber pelo menos alguma coisa da herança cultural deixada, principalmente, pelos negros da Tabatinga e do Quenta-Sol. A guia turística é moça bonita, uma ocaia avura, que explicou, com charme e simpatia: conjolo é casa; Deus é Granjão – daí conjolo de Granjão, casa de Deus, igreja; ingura é dinheiro; então conjolo de ingura é o mesmo que casa do dinheiro, isto é, banco, enquanto Cambuá é cachorro. Explica, ainda, com certa formalidade, que viriango é soldado, assim ficando entendidas as palavras e expressões que significam Igreja Matriz, Setor Bancário, Clínica Veterinária e Vila Militar. Ia me esquecendo: em sua mini-aula, a ocaia explicou, também, que mavero é leite ou lacticínio, excelente produto de nossa indústria. Para conhecer a cidade, resolveram fazer um cumbara-tur, embarcando na cambajara do Zé Coelho, que deixou sua linha de jardineira pra curimbá o turismo em Bom Despacho. Para tomar uma cerveja, um vinho, uma cachaça, tiveram que parar num conjolo de matuaba. Depois, sem deixar que as ocaia deles percebessem, os visitantes deram uma tipurada bem avura, quando viram o tamanho da radiopipa da mulher que passava na rua. Falando sério, com os vôos diretos da TAP, de Lisboa a Confins, trazendo turistas da Europa para Minas Gerais – principalmente para os jogos da Copa do Mundo em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro e outras cidades –, o prefeito de Bom Despacho, Simão Luquine de Melo Queiroz , mais conhecido como Simão Queiroz, resolveu sair na frente e preparar a cidade para o turismo. Com isto, a cultura afro-brasileira explodiu em Bom Despacho. Aumentou a vibração e o colorido do Reinado de N.Sra.do Rosário, enquanto a Língua da Tabatinga começou a ser utilizada na educação, no comércio, na publicidade e no turismo. Por falar nisto, como sugeriu a Lúcia Alvarenga, alguém deve instalar, em Bom Despacho, a Casa de Calçados Tiproque , lembrando a interessante palavra que significa calçado, sapato. Observe o leitor que os sons de tiproque lembram o caminhar de uma pessoa calçada com um par de tamancos. É o que os entendidos chamam de onomatopéia. Outra curiosidade: o melhor clube da cidade vai promover uma vizunga, isto é, um baile. E olha que, nestas paragens do interior de Minas, já se promoveu até uma vizunga sob os acordes da Orquestra Strauss, de Viena, Áustria, que – na época, 1997 – apresentou-se, também, em Brasília, Goiânia, Ouro Preto, Juiz de Fora e Belo Horizonte. Na Praça da Matriz, um telão mostra a cultura bondespachense em seus aspectos mais interessantes e curiosos, com destaque para a cultura popular. Perto do antigo coreto que existia ao lado da Matriz, aparece uma menina muito inteligente e ativa – filha de um médico e uma professora –, conversando com uns garotos que trabalhavam como engraxates. (Na conversa, a ocaizinha avura começou a aprender com os cuetim algumas palavras da estranha língua dos negros da Tabatinga, na periferia da cidade. Mais tarde, este conhecimento virou pesquisa e estudo do mais alto nível. O novo idioma descoberto é coisa que os escravos trouxeram da África. Muitas palavras vieram de Angola, na época uma região selvagem, hoje um país em vigoroso processo de reconstrução, desenvolvendo-se em ritmo superior ao da própria China que, por sua vez, se transforma na segunda maior potência econômica do mundo). Em Bom Despacho, como acontece quase no mundo inteiro, estuda-se o inglês, naturalmente pela sua importância como língua universal. Há interesse – também – pelo espanhol, por causa do Mercosul e por se tratar de um idioma de grande importância internacional. Mas, é claro: falamos e estudamos melhor é a nossa Língua Portuguesa, que possui uma literatura muita rica, figura entre os principais idiomas do mundo ocidental e é falada em diversos países e comunidades na Europa, na América, na África e na Oceania. Na voz do povo, é a língua da tabaca, como diz o congadeiro Zé Vieira, lembrando a Fiota e o Diguberto, falantes desse idioma especial. Entendo que poderemos chamá-lo, também, de tabatinguês ou tabaquês, por analogia com o português e outras línguas modernas. O vocabulário tabatinguês é uma combinação, um arranjo natural de palavras e expressões africanas, principalmente de Angola e Moçambique, com o português falado na periferia da antiga Bom Despacho. Algumas palavras vieram diretamente do português lusitano, como é o caso de cambóia, a nossa locomotiva, que lembra o comboio dos modernos caminhos de ferro de Portugal ou a Maria Fumaça do Museu Ferroviário de Bom Despacho. A importante tese universitária de Sônia Queiroz resultou de pesquisas no início dos anos 1980, que se transformou no livro Pé Preto no Barro Brancoe – A língua dos negros da Tabatinga (Editora da UFMG, Belo Horizonte,1988), lançado nesse mesmo ano na III Feira do Livro de Bom Despacho. Trata-se de um livro imperdível para quem se interessa pela cultura do povo brasileiro. Mesmo com a objetividade de um trabalho científico, sua linguagem é permeada com o estilo elegante, claro e poético que levou Sônia Queiroz a conquistar o Prêmio de Literatura Cidade de Belo Horizonte. Parabéns, cumbarade Bom Despacho! Axé, saravá, aleluia, para esta notável conquista nos domínios da pesquisa e da cultura afro-luso-brasileira. Jacinto Guerra,faleceu em 2018- escritor e professor, é bacharel em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e autor de vários livros, entre os quais O gato de Curitiba– crônicas de viagem e JK – Triunfo e Exílio – Um estadista brasileiro em Portugal, editados pela Thesaurus.
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