Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


07-11-2006

Infância


Lembrar da minha infância é evocar as minhas raízes açorianas. Fecho os olhos, procuro na memória o passado que me volta pouco a pouco, como slides, um atrás do outro, em cores fortes e luminosas como o verão do Faial.

O mar, onipresente na vida do ilhéu, me aparece em vagas repetitivas, cadenciadas, hipnóticas, batendo no calhau, espalhando um imenso lençol de espuma branca, aspergindo milhões de perdigotos salgados e frios sobre a muralha da calçada da Avenida do Mar. O ar, sempre ventoso, rescinde a lapas frescas. O sol lentamente no horizonte se esconde. O céu aos poucos escurece e o brilho das estrelas aparece num azul profundo, quase negro. Na marina os barcos balançam amarrados ao píer.
Vejo-me correndo no cais. O vento forte deixa minhas bochechas frias e avermelhadas e arranca a fita cor-de-rosa do meu cabelo. Corro atrás dela, em quanto papai e mamãe de braços dados, atrás de mim, olham-me e sorriem.
Passamos pela confeitaria do Largo do Infante. De lá vem cheiro bom e adocicado de sorvete de baunilha. Papai adivinha a minha gula e logo a delícia gelada anestesia a minha boca. Quando a noite chega vamos para casa. Antes de dormir vovó Amélia, que mora conosco, vai ao meu quarto dá-me um “xi” coração e ensina-me a rezar a oração do anjo de guarda.
Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, já que a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, guarda, governa e ilumina. Amém”.
É verão. O campo exibe pastos fartos e verdes. Os caminhos, sempre limpos, estão ladeados de flores azuis. São as hortênsias, como disse Cecília Meirelles, que “da altura das casas” formam cercas vivas onde vacas gordas, sonolentas, malhadas de branco e preto, deitadas na relva, ruminam. No caminho ouve-se o lamento choroso de um carro de bois. Os rapazes, “endiabrados”, correm atrás dele em algazarra.

Na Quinta da vovó Alice meus primos e eu brincamos enquanto as cabras e as vacas são tratadas. Pelas encostas da canada catamos dulcíssimas e negras amoras silvestres que se espalham em emaranhados silvados. Vez por outra rasteiros e vermelhos morangos nos chamam a atenção. E lá vamos nós, mais uma vez, buscá-los ao chão. Pegamos a fruta, assopramos, passamo-la na roupa e considerada limpa vai à boca, sem a mínima preocupação! Ouço vovô Camilo chamando-nos:
-Oh! Meninos venham comer melancia!

Em setembro as aulas começam. No Colégio Santo Antonio, a Irmã Electra com sua régua de marfim está pronta pra umas palmadas dar a quem não fizer a lição ou não souber se comportar. Pela manhã aulas de linguagem e matemática. À tarde temos bordado, trabalhos manuais, leitura, aulas de canto e interpretação.

No dia 8 de dezembro vai-se à Caldeira buscar um pinheiro para enfeitar o Natal. O presépio montado e adornado de laranjas e azevinho mostra o menino Jesus deitado na manjedoura, adorado por José, Maria e os reis magos, num lugar de destaque da sala.
 Minha tia Berta vai com outras raparigas nas vésperas do dia 25 de dezembro cantar modinhas natalinas de porta em porta para o Menino Jesus saudar!
Assiste-se Missa do Galo, come-se a ceia. Vovó diz:
“Abala-te”. Vai para a cama deitar e esperar São Nicolau chegar!
Pela manhã quanta alegria! Somos tantos a conversar, a discutir e pelejar, a rir, a se abraçar!
Volto à realidade. Foi uma época de sonhos, brinquedo e fantasia que na memória ficou e que não vai mais voltar. Agora é recordar!

Maria Eduarda
Uberaba 7/11/06