Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


04-10-2008

Herança Judaica De volta às origens


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De volta às origens

Filme desvenda os rituais ocultos dos cristãos-novos

 

gte vml 1]> !vml]-->http://www.jb.com.br/jb/images1/quadrocinza.jpgSolange Bagdadi

Depois de ler uma reportagem que falava da existência de uma vila com menos de 800 habitantes no extremo oeste do Rio Grande do Norte, cuja população, preponderantemente católica, praticava hábitos judaicos, a fotógrafa Elaine Eiger e a jornalista Luize Valente partiram para o Nordeste e seguiram a trilha dos marranos, descendentes dos chamados cristãos-novos - judeus que foram forçados a se converter ao cristianismo a fim de não serem queimados nas fogueiras da Santa Inquisição. Para escapar da perseguição, muitos fugiram de Portugal para o Brasil. Da expedição das produtoras no interior do país, nasceu o documentário A Estrela oculta do sertão que revela traços surpreendentes da formação da identidade brasileira.

As diretoras já haviam produzido o documentário Caminhos da memória - a trajetória dos judeus em Portugal, e ganharam o primeiro prêmio com A estrela oculta do sertão, no 9º Festival de Cinema Judaico, em São Paulo, na semana passada. No Rio, o documentário (com ingressos esgotados) participa do mesmo festival, que acontece entre os dias 18 e 25 de agosto. Ainda há uma chance de assistir ao filme no dia 27, no Memorial Getúlio Vargas.

A estrela oculta do sertão registra a história de brasileiros que vivem no sertão nordestino, principalmente na Paraíba e no Rio Grande do Norte - região do Seridó, até o extremo oeste do estado - na cidade de Venha Ver, em Natal, Mossoró e Caicó. São pessoas que pertencem a famílias católicas mas que, sem saber, sempre praticaram rituais do judaísmo. Um dos personagens do documentário é o médico Luciano Oliveira, 28 anos, nascido na Paraíba, e que até a juventude não tinha consciência da sua identidade judaica.

Desde pequeno ele acreditava que todos em sua casa seguiam a religião católica. Mas os rituais que presenciava não pertenciam ao cristianismo. Em sua casa, havia um oratório com letras em hebraico, sua mãe acendia velas às sextas-feiras, jejuava em determinados períodos do ano e mantinha hábitos como sepultar os mortos com mortalha e sem caixão e jogar fora as ''águas'' da residência quando morria alguém da família. O médico então descobriu que sua gente pertencia a um grupo de descendentes de marranos, que durante séculos precisaram guardar os costumes secretamente.

- Nosso filme fala dos judeus que, para fugir da Inquisição, que durou mais de 300 anos, foram seguindo o curso dos rios e adentrando os sertões, e preservaram os rituais religiosos, até porque a globalização demorou a chegar nessas regiões - conta Elaine Eiger, uma das diretoras.

Elaine lembra que essas pessoas revelam uma face menos conhecida da mistura que originou o povo brasileiro, além de índios, negros e portugueses.

A sensação de que algo estranho precisava ser esclarecido acompanhou o médico Luciano até os 13 anos, quando começou a investigar suas origens. Aos 18 anos, fez circuncisão (rito de iniciação judaico que consiste em cortar o prepúcio) e hoje luta para ser reconhecido pela comunidade judaica.

O documentário esbarra em questões de fé, tolerância e pertencimento. Trata da reivindicação por parte dos marranos do retorno ao judaísmo sem a necessidade de se converterem. No judaísmo, considera-se judeu quem nasce de mãe judia ou quem se converte.

- Minha mãe acende vela todas as sextas-feiras e Jesus não é a figura central de sua crença. Ela reza para os anjos e para Deus. Antes de descobrir que era judeu, eu já me identificava com os preceitos. Não como carne de porco, jejuo no Iom Kippur (Dia do Perdão) e também preservo o Shabat. Quero viver o judaísmo plenamente, com todos os direitos e deveres - diz o jovem médico.

Os episódios ocorridos durante a Santa Inquisição na Espanha e em Portugal, como a expulsão e fuga dos cristãos-novos e os posteriores destinos dessas pessoas, são fatos aprendidos nos bancos escolares e sempre foram tema de teses e livros. Autor de Das fogueiras da inquisição às terras do Brasil - a viagem de 500 anos de uma família judia (ed. Imago), Joseph Eskenazi Pernidji, advogado de profissão, dedica-se há 50 anos a pesquisar a história dos judeus na Espanha e em Portugal. Esta semana, ele lança A Saga dos Cristãos-Novos (Imago).

- Eu quis contar a história dos judeus que foram batizados à força, mas retornaram ao judaísmo. Escolhi falar sobre algumas famílias como Castro, Seixas, Cardoso, Pereira, Sequeira, Nunes, entre outros. A saga do povo brasileiro deve muito aos judeus e cristãos-novos - destaca Joseph.

O genealogista e historiador Paulo Valadares, um dos autores do Dicionário sefaradi de sobrenomes (ed. Fraiha), confirma que o assunto, pouco discutido na imprensa, sempre mereceu muita pesquisa e estudo na academia. A oportunidade de alcançar um público maior será um dos grandes méritos do documentário.

Valadares, que também deu consultoria ao documentário, chama atenção para o conflito presente nas histórias contadas no filme, que exibe casos de marranos como o do poeta negro pernambucano Odmar Braga e seus filhos, o da família Medeiros, de Natal - já na terceira geração de retornados ao judaísmo -, de dona Cabocla, nascida e criada no vilarejo de Venha Ver, no Rio Grande do Norte, beata, devota de 26 santos, e com hábitos nada cristãos, e do médico Luciano.

- O filme mostra quando Luciano vem a São Paulo falar com os rabinos ortodoxos, que explicam como um judeu é reconhecido. Mas o pessoal do Nordeste não aceita a conversão. Querem ser considerados como judeus mas não querem ser convertidos. É nesse instante que se dá o conflito da história - revela Valadares.

Para a historiadora da Universidade de São Paulo Anita Novinsky, que orientou a parte histórica do documentário, o marrano é um homem dividido, porque é cristão-novo e católico, com práticas judaicas dentro de casa, mas considerado cristão fora dela. Autoridade mundial em inquisição portuguesa, Anita conta que há 15 anos foi a Caicó e encontrou uma comunidade marrana. Segundo ela, o que acontece no Brasil é um caso único na história universal.

- Não existe um fenômeno antropológico dessa envergadura no mundo. Em vários lugares, há reminiscências, mas não há nenhum caso de comunidades que tenham vivido 500 anos sem se revelar. Hoje podemos comprovar que 30% da população brasileira, branca, de classe média é de origem judaica - afirma Anita.

Talvez a truculência da Inquisição tenha justificado o silêncio dos antepassados. De acordo com a historiadora, não havia escolha a não ser a conversão. Se apenas pedissem perdão, ainda assim eram garroteados. Quando clamavam por inocência, eram queimados vivos. Para a professora, eles podem ser considerados os precursores da modernidade por não aceitarem o jugo implacável das leis inquisitoriais.

- Não acreditavam em superstições e fanatismos, repeliam as imagens e não aceitavam o ato da confissão por acharem que os padres eram tão pecadores como as pessoas comuns - enumera a historiadora.

Recentemente, o filme foi exibido em Israel, causando grande impressão no público. Para Anita, a partir de agora o Brasil vai introduzir um novo capítulo na sua história, que deve ser ensinado nas escolas e universidades.

- O documentário de Elaine e Luize mostra que a herança judaica permaneceu durante séculos, preservada apenas pela fé daquela gente, sem livros nem contato com outros judeus - completa Anita, que acaba de criar o Laboratório da Intolerância, na USP, entidade interdisciplinar que vai se dedicar a pesquisar casos de intolerância e exploração contra crianças, mulheres, índios, negros e outros grupos discriminados.

http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/domingo/2005/08/20/jordom20050820001.html