Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


06-04-2019

Vamos brincar aos nazis pequeninos? Miguel Carvalho


 

Miguel CarvalhoMIGUEL CARVALHO

VAMOS BRINCAR AOS NAZIS PEQUENINOS? DA MONTRA DO CHIADO AO HITLER BEBÉ

ARQUIVO MORTO

Miguel Carvalho

O melhor mesmo é recuperar a dita caixa de brinquedos para a Páscoa e talvez, quem sabe, lançar um segundo volume de citações de Hitler, para juntar às amêndoas. Mas agora, por favor, com a foto “queriducha” do pequeno Adolfo em babygrow, na qual se possam apreciar aqueles olhinhos vivos e curiosos

No Chiado, no Natal de 1976, uma grande loja de brinquedos vendia, sem sobressaltos, uma caixa de miniaturas de figuras da Alemanha nazi. Além do inevitável boneco de Adolf Hitler, as crianças tinham à disposição um conjunto de oficiais das SS, maneirinhos, para se entreterem e simularem um Holocausto de trazer por casa. À época, o vespertino Diário de Lisboa registou a “brincadeira” nas suas páginas, ilustrando o estranho espírito natalício exibido nas montras da capital com a respetiva fotografia. Com ironia, e para o presente ser completo, o jornal aconselhava a juntar à referida caixa de brincadeira, a oferta de “algumas metralhadoras”.

Sobre estas miudezas passaram mais de 42 anos.

D.R.

Os escaparates e as estantes das livrarias encheram-se, entretanto, de reedições de Mein Kampf, biografias do chanceler germânico do Reich e volumes sérios ou menos esforçados sobre os universos recônditos e sinistros da sua mente. Citações de Adolf Hitler, da editora Guerra e Paz, provocou uma das controvérsias recentes à volta da suposta publicação de escritos mais leves, tendentes a humanizar “o monstro”. Responsável por aquela publicação, Manuel S. Fonseca indignou-se, desmentindo tal propósito. “Como editor, sou contra proibições, quero mostrar todos os elementos que permitem às pessoas refletir e pensar. Esse é o meu grande objetivo, levar as pessoas a refletir e a pensar sobre a nossa história”, justificou, em entrevista recente à VISÃO.

Contributo para essa profunda reflexão, presume-se, é a pergunta incluída nas páginas do livro. “Hitler foi bebé?”, questiona-se, em título, num capítulo, ficando o leitor certamente pasmo por saber que, afinal, até há uma fotografia do pequeno Adolfo, “debabygrow branquinho. Igual, angélico, a qualquer bebé, uns olhos vivos surpreendidos e curiosos”, lê-se na referida obra. E nós a pensarmos que ele já nascera “monstro”.

Não divago, mas lembro que, por estes dias, e de acordo com o conteúdo do Relatório Anual de Segurança Interna, divulgado pelo DN, “a intensa e multifacetada atividade de grupos extremistas de direita em Portugal” mereceu especial destaque. E preocupação. A escalada, associada a movimentos identitários e neofascistas, incluirá “conferências, ações de propaganda, celebrações de datas simbólicas, eventos musicais e sessões de treino de artes marciais” e revela, segundo o documento, o “grande dinamismo” da extrema-direita, apostada em contagiar protagonistas da nossa praça e em radicalizar argumentos em voga.

Como qualquer investidor sabe, uma economia livre e de mercado não pode ignorar nichos em expansão. Por isso, o melhor mesmo é recuperar a dita caixa de brinquedos para a Páscoa e talvez, quem sabe, lançar um segundo volume de citações de Hitler, para juntar às amêndoas. Mas agora, por favor, com a foto “queriducha” do pequeno Adolfo em babygrow, na qual se possam apreciar aqueles olhinhos vivos e curiosos.

Miguel Carvalho

MIGUEL CARVALHO

Nasceu a 25 de novembro de 1970, prova de que teve razão antes do tempo. Cresceu a beber PCP, PS, PSD, Expresso, Tom Sawyer, Soeiro, Marx, Groucho, Easton Ellis, MEC, Torga e épicos Marvel. Despertou para o jornalismo em plena delinquência, roubando jornais dos vizinhos e revistas nos quiosques. Fez jornais de caserna. Gosta da palavra camarada e vacinou-se contra o coleguismo e o fascismo de unha pintada. Foi «rádio pirata». Tirou (mas devolveu) o curso de radiojornalismo. Anda nisto desde 1989. Alguns acham demasiado. Publicou cinco livros com histórias que não ficam para a história (e muito bem!). Ganhou o prémio Gazeta de Jornalismo com uma investigação situada em 1979, para surpresa dele e escândalo nacional na era do instantâneo. O que mais gozo lhe deu foi ter um prefácio do Manuel António Pina num livro seu. Detesta o Portugal sentado e admira o Portugal sentido. Conhece Buenos Aires, Moscovo e Bissau, mas prefere a rua dele e o coração dos outros. Consome uma droga dura (Cossery) e uma leve (gin tónico), e nunca inalou empreendedorismo. É adito a todos os vícios que pode controlar, afetos à parte. FC Porto, jornais, livros, pernil assado, poesia, Talese, Chien Qui Fume, Billie Holiday, Carlos Paião, Douro, Alentejo e filmes argentinos são alguns dos seus dogmas. É ateu e tem raiva de quem sabe. Deseja glória ao brunch nas alturas e paz na terra aos homens de boa boutade. Veste o Porto por dentro. Cidade onde gostaria de viver até ser pó, cinza e nada.

Vamos brincar aos nazis pequeninos? Da montra do Chiado ao Hitler bebé

 

   
 

Vamos brincar aos nazis pequeninos? Da montra do Chiado ao Hitler bebé

O melhor mesmo é recuperar a dita caixa de brinquedos para a Páscoa e talvez, quem sabe, lançar um segundo volum...