Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


23-03-2019

O “primeiro fascismo” nasceu há 100 anos - José A Fernandes


"O termo ‘fascista’,.... é omnipresente e serve para identificar tudo quanto possa ser considerado de direita, autoritário e populista"

 

Jorge Alberto Fernandes

Há cem anos, no dia 23 de Março, Mussolini fundou, com um programa revolucionário, os Fasci di Combattimento. Dois anos depois, darão lugar ao Partido Fascista. O futuro Duce, que foi líder da ala mais radical do Partido Socialista, marcou a História da Europa entre as duas guerras e teve uma projecção quase universal.

Quando e onde nasceu o fascismo? Observa o historiador Emilio Gentile que a resposta parece óbvia: o fascismo nasce há exactamente 100 anos, no dia 23 de Março de 1919, com a fundação dos Fasci di Combattimento (à letra, Feixes de Combate), promovida por Benito Mussolini durante uma assembleia realizada no salão da Aliança Industrial e Comercial, no n.º 9 da Praça San Sepolcro, em Milão. Mas a questão não é assim tão simples, adverte Gentile.

Autores como o israelita Zeev Sternhell deslocam o nascimento da ideologia fascista para a vaga anti-racionalista da viragem do século, na França e na Itália: estaria já patente no Manifesto Futurista, de Marinetti, de 1909. Há outras datas, como a da fundação Partido Nacional Fascista (PNF), em 1921. O fenómeno de 1919 é diferente do de 1921, o que suscita a Gentile outra questão: que fascismo faz hoje cem anos?

Como definir o fascismo? Responde Gentile: “O fascismo é um fenómeno político moderno, nacionalista e revolucionário, antiliberal e anti-marxista, organizado num ‘partido-milícia’, com uma concepção totalitária da política e do Estado, com uma ideologia de fundamento mítico, viril e anti-hedonista, sacralizada como religião laica, que afirma o primado absoluto da nação, entendida como comunidade orgânica e etnicamente homogénea, hierarquicamente organizada num Estado corporativo, com uma vocação belicista e uma política de grandeza, de potência e conquista, visando a criação de uma nova ordem e de uma nova civilização.”

Se o 23 de Março é uma data-chave, foi na sua altura um acontecimento insignificante, que a grande imprensa ignorou, à excepção de uma pequena notícia no Corriere de la Sera, de Milão, e de toda a primeira página do Popolo d’Italia, o jornal de Mussolini. Participaram na assembleia 119 pessoas. Nenhum contemporâneo poderia então adivinhar o futuro.

O termo italiano fascio (feixe) vem da expressão latina fasces lictoris: o feixe de vergas com um pequeno machado de bronze que, transportado pelos lictores, abria caminho aos altos magistrados, simbolizando a autoridade e um poder de vida ou morte. Foi um símbolo utilizado na Revolução Francesa e adoptado pelos intervencionistas revolucionários italianos durante a Grande Guerra.

O programa de San Sepolcro 

A criação dos Fasci assinala um dos últimos momentos do “fascismo revolucionário”. Escreveu o historiador Renzo De Felice: “Acabada a Guerra, Mussolini deu vida aos Fasci di Combattimento, que queriam ser um anti-partido de curta duração, com um programa nacionalista, republicano, libertário, anti-estatista, tendencialmente anti-capitalista, além de, naturalmente, anti-bolchevista.” Em 1915, usa pela primeira vez a expressão “movimento fascista”.

Mussolini (1883-1945) foi dirigente da ala revolucionária do Partido Socialista Italiano (PSI) e director do seu jornal, Avanti, em 1912-14. Durante dois anos incitou o proletariado à luta revolucionária para abater o Estado burguês. A divergência surge com a Grande Guerra. O PSI e Mussolini defendiam a “neutralidade absoluta”. Mas, no fim de 1914, Mussolini passa a advogar a intervenção para derrotar o militarismo dos impérios centrais e acelerar a revolução mundial. Para isso funda o Popolo d’Italia, o que lhe vale a expulsão do partido.

Após 1918, Mussolini vê-se sem seguidores. Tenta fazer do seu jornal o porta-voz dos ex-combatentes e organizá-los nos Fasci. O anti-partido apresentava-se como anti-ideológico, em oposição aos partidos tradicionais. Agregava as mais variadas categorias: Marinetti e os futuristas; os arditi (valentes), ex-combatentes ultranacionalistas dispostos ao combate de rua, ou anarco-sindicalistas seduzidos pelo seu verbo revolucionário. A assembleia de Milão foi tumultuosa e dela saiu um estranho programa.

Destaco as principais reivindicações: proclamação da República; sufrágio universal, voto das mulheres e garantia das liberdades fundamentais; redução do papel do Estado e descentralização; abolição do Senado; abolição da polícia política; magistratura eleita e independente; desarmamento; proibição da diplomacia secreta e uma política externa baseada na solidariedade dos povos; supressão das sociedades anónimas; jornada de trabalho de oito horas; a terra aos camponeses; gestão das indústrias e dos transportes pelos sindicatos.

A Mussolini não interessava o programa que, flexível e oportunista, lhe permitia pescar em diferentes águas. Interessava-lhe a organização. E, depressa, os Fasci se multiplicaram na maioria das cidades italianas, tendo no seu núcleo os arditi.

As eleições de Novembro de 1919 mostram que são uma força ainda marginal. A situação muda com o biennio rosso (biénio vermelho, 1919-20), marcado por vagas de greves, ocupação de fábricas e confrontos nos campos, onde o sindicalismo agrário assusta os proprietários. As “tropas de choque” de Mussolini lançam-se numa guerra contra os socialistas. Incendeiam a sede do Avanti. Esboça-se uma aliança entre o “primeiro fascismo” e os grandes interesses industriais e agrários, contra o inimigo comum: o PSI e os sindicatos. O dinheiro começa a afluir. Em fins de 1921, Mussolini dispõe de 250 mil fascistas, em 830 fasci, implantados em todo o território. É a hora de mudar de face e de substituir o “anti-partido” pelo Partido Nacional Fascista. O 23 de Março teria sido a fundação de um “primeiro fascismo”. Aquele que De Felice designou por “fascismo revolucionaríssimo do pré-Marcha sobre Roma”, em contraponto com o “fascismo-regime”.

A caminho do poder

Para relançar o movimento, Mussolini faz uma viragem. Dois factores serão decisivos: por um lado, a sucessão de governos débeis que fazer crescer a desconfiança perante a democracia liberal. Por outro, o “inimigo” vai dividir-se em Janeiro de 1921, com a cisão entre comunistas e socialistas.

O primeiro instrumento de Mussolini é o uso da violência em grande escala pelas suas milícias, os “esquadristas”. A primeira grande ofensiva, anota Gentile, “é lançada nos finais de 1920, após uma mobilização de burgueses e de classes médias anti-socialistas que coincide com a ocupação das fábricas em Setembro”. Os estatutos do PNF, fundado em Novembro de 1921, consagrará o ‘esquadrismo’ como instituição essencial do novo partido, dentro de um desígnio já totalitário.

Segundo outro historiador, Matteo Milan, a violência, banalizada pela brutalidade da Grande Guerra, é central no projecto fascista: “Os esquadristas praticavam a violência como algo natural e visceral: ela definia o seu conceito de fascismo e as suas vidas de ‘homens novos fascistas’. (...) Prosseguiam já o objectivo da conquista integral da sociedade e a realização do projecto totalitário de uma nova Itália e de um novo italiano, através da eliminação de todas as formas de oposição.”

A manobra complementar é a reconversão político-ideológica. “Acentuou a viragem à direita, ao sustentar que o fascismo era o mais atractivo e agressivo movimento de defesa da burguesia produtiva. Adoptou uma atitude respeitosa para com o catolicismo. Por último, acentuou as ambições expansionistas do fascismo” (Gentile). Se os burgueses encontravam em Mussolini um providencial aliado, também serão surpreendidos: ele não será um aliado, mas o Duce a quem se deverão subordinar.

Esta fase culmina em Outubro de 1922 com a Marcha sobre Roma, a grande lenda fascista. Interroga-se o historiador britânico Donald Sassoon: como chegou Mussolini ao poder? Era a maior força nas ruas, mas tinha uma escassa base eleitoral e não controlava os militares. Por que recebeu o beneplácito da monarquia? Porque se aproximou dos liberais e ofereceu-se como uma solução para a crise político-económica italiana. A elite política rendeu-se, apostando na integração de Mussolini no sistema.

Sublinha Sassoon que, enquanto os fascistas encenavam na Marcha sobre Roma um quadro de sublevação e violência revolucionária, Mussolini era nomeado primeiro-ministro no quadro da legalidade constitucional. Uma vez no poder, obtém a maioria absoluta nas eleições de 1924. Chegava a hora do partido único e do fascismo-regime.

A lenda de Mussolini 

O fascismo marcou a História da Europa entre as duas guerras mundiais e seduziu milhões de europeus. A sua influência ideológica estendeu-se a outros continentes.

Explicou Sternhell, numa entrevista ao PÚBLICO em 1996: “Donde vem aquilo a que chamo o ‘charme secreto do fascismo’? É a vontade de encontrar uma terceira via entre o conservadorismo burguês e o marxismo proletário. De criar uma nova civilização, uma civilização viril, uma civilização de soldados e não de negociantes ou de intelectuais. O fascismo era uma fraternidade e um apelo ao sacrifício. Uma violência criadora, no sentido soreliano do termo. A procura duma civilização em que o motor do comportamento deixe de ser o lucro mas o sacrifício (…) O fascismo defende a coesão da sociedade e recusa tanto a luta de classes como a luta de ‘todos contra todos’ do liberalismo.. É por isso que encontrou tanto sucesso no mundo, sobretudo na Europa..”

Um século depois dos Fasci di Combattimento e mais de sete décadas após a queda do fascismo (1943) e a morte de Mussolini (1945), este continua vivo na memória dos italianos, assinala Gentile. “Mas também permanece vivo na memória colectiva mundial. O termo ‘fascista’, por ele cunhado e referido à sua pessoa, é omnipresente e serve para identificar tudo quanto possa ser considerado de direita, autoritário e populista.” jafernandes@publico.pt

 

O “primeiro fascismo” nasceu há 100 anos

 

   
 

O “primeiro fascismo” nasceu há 100 anos

Jorge Almeida Fernandes

Há cem anos, no dia 23 de Março, Mussolini fundou, com um programa revolucionário, os Fasci di Combattimento. Do...