01-01-2018 A coragem de desvendar o Brasil : ‘Ano de Euclides’
A coragem de desvendar o Brasil
No centenário da morte do escritor , Grupo Estado celebra o ‘Ano de Euclides’ com projeto cultural multimídia
Laura Greenhalgh , de O Estado de S.Paulo
Nas andanças , o olhar sempre aberto ao que surgia , depois traduzido no caderno de notas
SÃO PAULO - Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras , em dezembro de 1906 , Euclides da Cunha concluiu a saudação falando do poeta Valentim Magalhães , a quem iria suceder na cadeira de número 7 , que também fora do poeta Castro Alves. Disse que faltava à obra de Magalhães a necessária concentração intelectual , “segredo dos gênios e dos medíocres”. Que as mundanidades e o gosto pela polêmica tiraram-no do foco literário. E terminou assim: “Entregou-se de corpo e alma ao turbilhão sonoro e fulgurante da existência. Foi seu grande defeito , dizem. Mas este defeito , o seu maior defeito , é a mais bela imperfeição da nossa vida: o defeito do viver demais.” Magalhães morreu aos 44 anos. Pois quando pronunciou este discurso , Euclides estava bem perto de seu próprio fim – tombou aos 43 anos , em 15 de agosto de 1909.
Diário de bordo: Viagem refaz expedição de Euclides da Cunha ao Acre
O centenário de morte do autor de Os Sertões , celebrado pelo Grupo Estado a partir de hoje e ao longo de 2009 , relembra a trajetória do engenheiro , escritor , correspondente de guerra , colaborador deste jornal por duas décadas e do homem que teve o “defeito do viver demais” , embora morresse tão cedo. Não fosse abatido pelos tiros do amante de sua mulher , Euclides certamente envelheceria propondo desdobramentos à sua obra.
Como fez ao voltar da expedição a Canudos (BA) , em 1897 , a convite de Julio Mesquita , diretor do Estado: o plano de ação que vislumbrou para a cobertura de um dos conflitos mais sangrentos da nossa história mudou no contato com o ‘Brasil profundo’. A ponto de Euclides assumir , quando mais tarde publicou Os Sertões , um outro olhar sobre o País. O câmbio radical levou Monteiro Lobato a comentar: “Admiro Euclides da Cunha por seus valores e sobretudo pela coragem moral que sempre demonstrou. Foi ele quem nos ensinou a enfrentar a realidade e a não mentir a nossa eterna mentira patriótica.”
POR RIOS DANTES NAVEGADOS
“O Ano de Euclides” é um projeto jornalístico , cultural e multimídia do Grupo Estado , que deu início neste final semana com a ida do repórter Daniel Piza e do fotógrafo Tiago Queiroz ao Estado do Acre , de onde partiram para refazer a expedição à região do Alto Purus , que o escritor empreendeu entre abril e outubro de 1905. Hoje , quando os leitores estiverem com esta página nas mãos , Piza e Queiroz já terão deixado o porto de Sena Madureira , a duas horas de Rio Branco , iniciando a rota fluvial que os levará até o Peru. Vão atravessar seringais , visitar comunidades ribeirinhas , fazer contato com tribos indígenas.
De enorme significado cultural e sociológico , a expedição amazônica de Euclides representa um período ainda pouco conhecido na vida do escritor. Se em Canudos ele descobre a figura do sertanejo , no Alto Purus depara-se com o seringueiro em sua concepção áspera da vida. “O seringueiro rude , ao revés do artista italiano , não abusa da bondade de seu deus (...). É mais forte. É mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza” , escreveu no livro póstumo À Margem da História.
Traumatizado pela experiência de Canudos , Euclides combateu a ideia de o Brasil entrar em guerra com o Peru pela posse do que seria hoje uma parte do Estado do Acre. Condenou o envio de tropas à região , defendeu um acordo por via diplomática e acabou sendo incumbido pelo Barão do Rio Branco para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Sua missão: fazer o levantamento cartográfico da região e determinar a nascente do rio que separa os dois países.
Ao refazer o mesmo trajeto 104 anos depois , Daniel Piza estabelecerá pontes entre passado e presente. “O que terá mudado desde a ida de Euclides? O que permanece igual? O que restou intacto? Encontraremos rastros da expedição?” , pergunta-se. Assessorados por pesquisadores e gente da região , repórter e fotógrafo já percorrem rios acreanos. Passarão pelo município de São Brás , onde o barco de Euclides naufragou , chegarão a Triunfo , localidade da primeira reunião da comissão bilateral , cruzarão a fronteira e finalmente alcançarão o Rio Cujar , na cabeceira do Purus. Há um século , Euclides e seu grupo atracaram em margens peruanas como náufragos. Estavam famintos , extenuados , tomados pela malária.
A expedição poderá ser acompanhada em boletins pela Rádio Eldorado , notícias em tempo real no portal estadao.com.br e matérias no próprio jornal (caderno Vida&). Serão relatos colhidos no desenrolar da aventura , compondo um grande “diário de expedição” , depois transformado e ampliado em publicações especiais.
NOS ARQUIVOS DA ‘CASA’
A partir do mês de abril , a celebração do centenário entra em outros domínios: o Caderno Cultura inaugurará a seção “Euclides no Estado” , em que serão reproduzidos trechos de artigos do escritor para o jornal , acompanhados de comentários críticos feitos por estudiosos.
A relação histórica entre o articulista e o periódico será realçada. Euclides da Cunha foi uma aposta jornalística que Julio Mesquita , então diretor de A Província de São Paulo , fez em um jovem e exaltado ativista republicano. Matriculado no curso de Estado-Maior e Engenharia da Escola Militar , na Praia Vermelha (RJ) , Euclides , ainda cadete , protagonizou uma cena de indisciplina que ficaria famosa: jogou ao chão o sabre-baioneta , diante do ministro da Guerra , em protesto contra o plano de carreira militar. Pelas leis do Conselho de Guerra , poderia ser condenado à forca (escapou por intervenção de Pedro II , a quem atacava) , mas foi expulso da escola. É nessa fase que veio a São Paulo , para tratar uma colaboração com o jornal que se estenderia , com idas e vindas , por mais de 20 anos.
Seu primeiro artigo para a Província , depois Estado , foi publicado em 22 de dezembro de 1888 , com ataques à família real. Semanas depois , assina “ 89” , artigo em que relaciona a Revolução Francesa de 1789 ao movimento republicano no Brasil. Em “A Nossa Vendeia” , de março de 1897 , analisa a derrota da terceira expedição do governo contra os conselheiristas em Canudos. E logo se prepara para acompanhar a quarta expedição , que enfim dizimaria o arraial nos sertões. Viajou como correspondente do jornal.
Também a expedição amazônica foi tema de vários artigos. Em um deles , publicado em maio de 1904 , Euclides escreveu , a caminho de Manaus: “A guerra iminente tem uma feição gravíssima.. Se contra o Paraguai , num teatro de operações mais próximo e acessível , aliados às repúblicas platinas , levamos cinco anos para destruir os caprichos de um homem , certo não se podem prever os sacrifícios na luta contra a expansão vigorosa de um povo.” Deuses incas devem ter iluminado seu pensamento: que cicatrizes deixaria para o Brasil uma guerra no coração da Amazônia?
Em agosto , mês do centenário , o Grupo Estado prevê , como parte do projeto , a realização em São Paulo de um seminário internacional , com a participação de especialistas do Brasil e de fora. Não é de hoje que a obra euclidiana tornou-se objeto de traduções e pesquisas em outros países , além de inspirar o cinema e o teatro. É o ‘olhar estrangeiro’ rompendo barreiras com a cultura brasileira , como fez Samuel Putnan nos anos 40 , ao verter para o inglês Os Sertões ( com o título Rebellion in the Backland). Neste seminário , entre os painéis temáticos , pretende-se focalizar Euclides da Cunha , o poeta , cuja produção , também desconhecida , condensa um lirismo lúcido e trágico. Talvez , a sua síntese possível.
A coragem de desvendar o Brasil - Geral - Estadão
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