03-03-2019KÔNGO Uma nova e aprofundada visão do Reino do Kôngo - Francisco G AmorimKÔNGO Uma nova e aprofundada visão do Reino do Kôngo
Há uns dias, em boa hora, caiu na minha caixa de e-mails um livro, em PDF, trabalho de investigação de um doutorado de Angola, que me deixou curioso. Não li o livro todo com o cuidado que parece merecer, mas numa leitura rápida, fiquei preso pelo interesse que desperta um trabalho sério, muito bem apresentado, com algumas lições de filosofia política, que abaixo reproduzo, para o que peço ao autor que me perdoe o abuso, apesar de referir o seu nome. Muito bem escrito, uma ou outra rara gralha gráfica sem a menor importância, e o desenvolvimento de uma tese extremamente interessante. O livro, O REINO DO KÔNGO E SUAS ORIGENS MERIDIONAIS, de Patrício Batsikama, merece ser lido por todos aqueles que se interessam pela história de Angola, de África. O autor desenvolve, pela primeira vez, o conceito do espaço ocupado pelo antigo, antigo talvez de mil ou milhares de anos, Reino do Kôngo, que “nasceria” lá bem no sul Sul(Mbâmba), possivelmente ainda um pouco para além do Cunene, estendendo-se para Norte (Nsûndi) até ao Gabão. Para chegar a estas conclusões fez interessantíssimos e profundos estudos linguísticos e etnográficos, que só lendo o livro se podem começar a compreender. Há autores que não concordam com esta visão de Patrício Batsikama, mas o que se lhe não pode negar é a qualidade, a profundidade e a seriedade do muito interessante trabalho.
Vou deixar qualquer outra – hipotética – crítica sobre o livro para mais tarde, mas agora, como digo atrás, vou reproduzir os conceitos que se poderiam chamar de uma “Constituição” do Reino do Kôngo, a sua “lei sagrada” (bungânga), pela sua profundidade, humanidade e magnífica visão social. Os países chamados desenvolvidos, há muito que perderam a pureza que os chamados povos primitivos faziam questão de honra em conservar. Estes conceitos são uma tremenda lição de ética para aqueles que se têm apoderado, e continuam a fazê-lo, em quase todo o mundo, do mando, do poder, da riqueza. Abençoados povos ditos primitivos, porque são milhões de anos avançados do que os “evoluídos”. Parece que a espécie humana, entre todo o reino animal, é única que regride, em vez de progredir. Talvez hoje coma melhor, mas rouba muito melhor, mente que é um horror, engana os mais incautos e então para matar... fá-lo com uma eficiência incrível, igual à mesma indiferença. Mas vamos aos conceitos. Diz o autor: A determinação destes princípios decorrem de estudos que conduzimos sobre as relações sociais (antropologia dos costumes) e as posturas comportamentais típicas do Kongo, geralmente encerradas nos enunciados “filosóficos” dos provérbios, adágios e contos que permeiam a cultura Kongo. Assim, o acesso a tais instrumentos do pensamento tradicional será aqui feito por meio de recurso à língua Kongo.
a)- Integridade e indivisibilidade do território: «Kôngo tadi: ka bâsu’embasinga» - O Kôngo é uma pedra impossível de dividir em partes. b)- Emigração e/ou ocupação do reino: «Nsûndi tufila ñtu, Mbâmba tulambûdila mâlu» - Enquanto as nossas cabeças são sempre dirigidas ao Norte (Nsûndi), os nossos pés são direcionados para o Sul (Mbâmba). 1 c)- Respeito da personalidade humana: «Mbwa ñzîngi, nkulu ñzîngi, kimfwetete katânu’eñkânda; muntu, mfumu ka wându’embata, ngo ka bañkatul’eñkânda» - Assim como não é permitido pisar a pequena formiga, também é proibido atentar contra a vida de um servo, até mesmo a de um cão. Assim como não se pode abater um leopardo, rei da selva, não se pode maltratar (bater) um ser humano, que é o rei do seu meio. d)- Paz e tranquilidade no reino: «Ku Lûmbu ke kwakota ngulu ye mbwa. Twavwikwa luwusu kwa yân’ampûluka, twalungwa muna makânda ma nkosi ye ngo» - Ao Palácio (país) não tenha acesso nem porco nem cão (inimigo). É quando estamos sempre cobertos de bênçãos que progredimos no entendimento, na união e na concórdia. e)- Cidadania: «Wakôndwa mvila mu Kôngo, ñwâyi wa ntuma nkuni ye maza» - Aquele que não pertence a uma de suas três linhagens é escravo no Kongo, eternamente destinado a recolha de lenha e água. f)- Nacionalidade: «Mpêmbele ndîng’andi luzômbo, kansi mpângi’aku muna mazimi ye mvila» - Mesmo sendo o Mpêmbele originário de Zombo, por sua linhagem sanguinea é seu irmão (compatriota). g)- União: «Tusânga bungudi vwa kwa ntalu. Tu akimpalakani, lumbota-mbota mu ñlâmbu’a maza: ana fwâmbika, ana veteka; efûmbwa kana mfûmbilu, evetekwa kwa mpândi ye ñlôngo» - A união é um precioso tesouro; assim como os «lumbota-mbota»entrelaçados à beira de um rio, as correntes podem envergar-nos mas jamais serão capazes de nos desunir. 2 h)- Equidade das leis: «Nsi ya lukându, i nsi ya lubîndu; kakânda, bîndwidi; kabînda, kândwidi» - No mesmo país em que a lei é severa, há também tolerância. i)- Igualdade dos cidadãos perante a Lei: «Mfumu ye mfumu: Ngânga ye ngânga» – Todos somos mestres, todos somos senhores. 3 j)- Direito de contestar (direito da oposição): «Bana batêle, bana basekole», literalmente: onde há os que dizem, deve haver os que contradizem. 4 k)- Respeito aos estrangeiros: «Nzênza ka vângu’enkuta» - é proibido intimidar ao estrangeiro, e «Tukund’enzênza, ke tukayilwa kwa nzênza ko» recebamos os estrangeiros com hospitalidade e reverência, mas recebamos nada deles. l)- Autoridade competente: «Kôngo dya ñkôngo’a ngolo; vo kuna ye ngolo ko, Kôngo k’atuma dyo ko» - o governo do Kôngo pertence ao Mu-Kôngo mais capaz; Sem as capacidades necessárias, é inutil pretender dirigir o Kôngo... Isto porque mu mpu mu zîngilânga nsi, isto é, a vida do país depende da capacidade daquele que exerce o poder. m)- Eleição popular da autoridade: «Tadi ñlengo-ñlengo, vo k’ulengomokene dyo ko, Kôngo k’uyâla dyo ko» - Sou (o povo) que nem uma pedra muito escorregadia (tadi ñlengo-ñlengo), quem com ela não familiariza jamais chegará ao poder. 5 n)- Investidura:«Kimfumu, salu kya tûmbikwa» - o poder é um assunto de investidura (isto é, não há poder naquele em quem não foi investido por quem o detém). o)- Aprendizagem da arte de governar e exercer poder. «Wazola yâla, teka tebwa kungulu»: corte todo o cabelo se queres governar. p)- Mandatação constitucional dos cargos: «Zîngu kya bumpati, i zîngu kya Bungânga»: a duração de um mandato (bumpati), político ou administrativo, deve ser consagrada na “lei sagrada” (bungânga), neste caso a Constituição. q)- Respeito da Lei: «Kodya dya môyo, ka dikomwa, ka dikatulwa ñlôngo» - No caracol (kôdya) da vida, a autoridade não pode tirar nem aumentar uma lei ao seu bel-prazer. Isto é, uma Constituição não pode variar consoante o detentor do poder. r)- Linhagem do poder: «Na Mbênza wuyâlanga, Na Mavûngu ka yâlânga ko» – No Kôngo, somente os descendentes de lukeni (Mbênza) exercem o poder tanto político, administrativo, quanto judiciário.6 s)- Responsabilidade: «Vita wañtânga ñtu, ke mabûndu ko» – Em tempo de guerra contam-se as cabeças e não a quantidade de regimentos. 7 t)- Autonomia no poder: «Na Mbâmba ñkote, Na Nsûndi ñkote, ke vena wubângula ñkote’a ñkweno ko» – Tanto aquele que governa em Mbâmba, quanto aquele que governa em Nsûndi, têm cada um os seus deveres (nenhum dos dois poderá interferir nas prerrogativas do outro). u)- Hierarquia: «Nkusu’a mbakala ka sângwa ye mbênde. Vo nkusu, nkusu ; vo mbênde, mbênde; vo ngone, ngone;; vo mfîngi, mfîngi» – O sulbaterno não pode merecer a mesma consideração que o seu superior (nkusu’a mbakala). v)- Democracia: “Ndêngole, ndêngole: sya ayi mâtu”– Toda a autoridade deve exercer o poder com as orelhas. Isto é, o poder não consiste somente em ditar ordens, mas também em escutar o povo. w)- Diligência: “Wundyeka mfûndi, k’undyeki dyambu ko” – Faça jejum de funge, jamais do conhecimento em que há a instrução. x)- Pragmatismo: “Tukûmb’evwa, ke tukûmbi mâmbo ko” – Aclamamos as realizações e não as promessas. y)- Liberdade de comércio: “Kânga ñsa, k’ukângi ñkela ko. Vo kênge ñkela, mbôngo yifwidi ye nzala” – Ao povo pode-se privar momentaneamente as liberdades individuais, mas não se deve privar o comércio para não provocar fome à nação. z)-Respeito ao patrimônio público: «Kyame i vwa, kyeto ka vwa ko» – o que é meu acaba, mas é o que é nosso que perdura. aa)- Direito público da terra: “Mbôngo mu ñtoto, fwa dya kânda, ka yidyânga muntu mosi ko” - a terra e tudo o que ela produz pertence à comunidade (ao povo). A ninguém é permitido apoderar-se isoladamente. ab)- Defesa do território: “Nsi yakêmbo zimboma: tsimpangala” – um país sem forças de defesa é que nem hangar sem teto. ac)- Vigilância do território: “Na Mata ma Kôngo, ngo kana lêle, nsânsi’añkila ka yilêndi lêka ko” – Tal como a cauda do leopardo que dorme, os soldados do Kôngo vigiam e movimentam-se noite e dia. ad)- Honra: “Tobola nkosi, tobola ngo: lulêndo mbuta”: seja sempre mais forte e mais poderoso que o leão e o leopardo, mas jamais se canse de em tudo ser honrado.
Notas do autor: 1- A partir deste princípio iniciamos a nossa tese de uma origem meridional do reino do Kongo. 2- Um tipo de árvore selvagem, geralmente situado à beira de rios, cujos ramos crescem em forma de feixes de raízes cipoadas que se entrelaçam de forma anárquica formando um imenso feixe entrelaçado que torna praticamente impossível a tarefa de desuni-los sem recurso ao corte radical e paciente de cada ramo. 3- Este provérbio é uma fórmula que introduz um orador em cena diante de uma assembleia deliberativa, proclamando que todos os cidadãos são iguais no Kôngo. 4- Esta é também uma fórmula legislativa que introduz em cena os oradores tradicionalmente chamados de mpovi, responsáveis pelo contraditório num parlamento de cidadãos. 5- Estamos diante de um adágio cujo sentido fundamental é: chega-se ao poder mendigando-o do povo (como quem brinca com a pedra escorregadiça). Por isto aquele que tem o poder é chamado de mendigo, pedinte, isto é, Kiyala moko, 6- Refere-se à tradicional tridimensionalidade do poder público: «poder político», «poder administrativo» e «poder judiciário», excluída a ideia de se o seu exercício é democrático ou não. Adiante veremos o caso peculiar do Kôngo. 7- Tal como tradicionalmente utilizado, o adágio inclui a noção de que todo o líder deve consciencializar-se de que o erro dos seus liderados é seu erro.
Notas minhas: Suponhamos por um só instante que a Constituição do Brasil pudesse ter esta base, e SOBRETUDO a capacidade para a cumprir com rigor. Vejamos por alíneas: 1.- a) Integridade do território: O Brasil tem estado a dividir o território guardando extensões quilométricas para tribos indígenas. Ao mesmo tempo faz vista grossa a que essas mesmas áreas sejam invadidas por fazendeiros, mineradores e ladrões de madeira! 2.- d) Paz e Tranquilidade: ... união e concórdia!!! Parece ser impossível. Há dias a um dos membros que decidem sobre a escolha do Prémio Nobel foi perguntado porque nunca um brasileiro o tinha recebido. O senhor não quis responder mas acabou por explicar: No Brasil se alguém é apontado para receber o prémio toda a gente começa a falar mal dele. No Brasil ninguém se entende! Vejamos agora com estas eleições: ganhou quem teve mais votos. O que afirmaram os perdedores, enraivecidos: vamos fazer tudo para que dê errado!!! O Brasil que se dane. Leia-se, em continuação a alínea g). 3.- h) Equidade das leis: Só de pronunciar esta hipótese doem até as meninges, quando vemos, diariamente o vergonhoso supremo tribunal federal com grande parte dos juízes comprados! 4.- i) Igualdade dos cidadãos: Outro assunto que no Brasil só pode ser piada, e de imenso mau gosto. 5.- j) Direito de contestar: Beleza! O direito a discutir, a ouvir opiniões diversas. A isto se chama democracia. 6.- l) Autoridade: Vinte anos sem autoridade, foi o que passámos. Vamos ver se agora, no caos em que o país está, pelo menos a autoridade se impõe... com justiça. 7.- o) Aprendizagem: Cortar o cabelo; símbolo da humildade, que tanta falta faz aos que se arrogam a tudo saber e mandar. 8.- q) Respeito à Lei: Outra maravilha. Por aqui fazem-se leis sobretudo para favorecer os que as ditam. Uma vergonha.. 9.- v) Democracia: Exercer o poder com as orelhas. Só um sábio escreveria assim. 10.- w) Diligência: Não faça “jejum” de instrução! Copiaram Sócrates ou vice-versa? 11.- x) Pragmatismo: São incontáveis as inaugurações de obras que não se fazem, não acabam, que se prometem. Mas, cadê as realizações? 12.- ad) Honra: .... jamais se canse de ser honrado.
Recomendo que leiam o livro e, se possível que obriguem os homens públicos que o leiam, em voz alta, do “alto das suas confortáveis cátedras”! Vale a pena comentar mais?
Francisco G Amorim 17/02/2019
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