Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


07-10-2017

Exilados-a pena de degredo José Araújo


HISTÓRIA/LITERATURA/PESQUISA

Exilados

07/10/2017 JOSÉ ARAÚJO

A pena de degredo – exílio involuntário com aproveitamento da mão-de-obra do degredado – foi aplicada em Portugal durante sete séculos até ser abolida do Código Criminal português em 1954. Aqueles que cometiam atos considerados ofensivos à Coroa ou à Igreja eram frequentemente obrigados ao exílio nas colônias, onde eram forçosamente integrados à economia local. Mas houve também aqueles que recorreram ao exílio voluntário para salvar a própria pele.

 

Foi isso o que ocorreu, na primeira metade do século XIX, durante o conflito que pôs em lados opostos os irmãos d. Pedro, defensor da constituição liberal, e d. Miguel, defensor do absolutismo. Centenas de liberalistas fugiram dos expurgos e perseguições dos partidários de d. Miguel em busca de refúgio na Inglaterra. Mas o que encontraram lá não foi exatamente o apoio esperado à causa liberalista, como sugere o trecho citado abaixo, ao qual acrescento meus destaques.

Tinham chegado reduzidos a uma desesperada penúria. Os ingleses, surpreendidos por aquele bando maltrapido, deitavam-lhes olhares onde alternavam o desprezo e alguma compaixão. Mas esta rendia pouco. Só os quakers se cotizavam e lhes faziam facilidades; os demais fechavam-se numa indiferença perfeita e um tanto quanto agastada. (Exilados – 1828-1832: História Sentimental e Política do Liberalismo na Emigração –  Victorino Nemésio – p. 51)

O tal “bando maltrapido” era em Portugal acusado de defender uma monarquia regida por uma constituição liberal – a de 1822 -, que trazia a independência entre os poderes, a igualdade entre os cidadãos e retirava os privilégios da nobreza e do clero – um conjunto que em nada agradava a d. Miguel, então usurpador do trono que seria por direito de sua sobrinha d. Maria II, filha de d. Pedro I(V), após a renúncia deste.

A fuga de Portugal, como sugere a passagem inicial, não trouxe paz aos exilados, pois a terra que os acolheu não parece tê-los acolhido. Na verdade, lá eles encontraram mais sofrimento e injustiça, em parte por culpa de seus conterrâneos de estirpe mais elevada, como sugere o trecho seguinte, ao qual também acrescento meus destaques.

Começa então a formar-se o azedume que enche de travor a emigração e bolsará sobre Palmela, com muito pouca justiça, o essencial das queixas. Enquanto a má vontade dos ingleses abre brecha na imprensa, – na Gazeta de Exeter, no John Bull, no Morning Post, – Palmela, já responsabilizado pelo desastre do Belfast, manda dividir os emigrados em seis classes, segundo um critério revoltante para os dos números mais baixos. […] Com as seis classes formava-se um Depósito, cuja direção foi confiada a Cândido José Xavier. Era uma personalidade dúbia, filho dum ferreiro, antigo oficial da guerra peninsular, a quem se acusava de ter recebido de braços abertos os franceses como vogal da deputação que a maçonaria enviara a Junot. […] Cada classe tinha o seu chefe, que devia ser o legítimo canal das pretenções. A transgressão desse princípio era tão severamente punida que os emigrados se queixam a cada passo de semelhante rigidez. (Exilados – 1828-1832: História Sentimental e Política do Liberalismo na Emigração –  Victorino Nemésio – pp. 51-52)

Pedro_de_Sousa_Holstein,_Marquês_de_Palmela_e_Par_do_ReinoPedro de Sousa Holstein – marquês de Palmela (1781-1850)

A responsabilidade pelo tratamento nada igualitário dado à maioria dos exilados recaiu, portanto, sobre Palmela e Cândido José Xavier. Sobre este último, a propósito, a acusação de haver colaborado, como membro da Maçonaria, com o exército invasor de Napoleão encontra eco na obra de Manuel Borges Grainha, segundo o qual, ao chegar a Sacavém, o general francês “Junot foi recebido e saudado com a maior deferência por todos”, e uma “deputação maçónica […] apresentou-lhes as suas saudações no Quartel Mestre General e pediu-lhe que protegesse a Maçonaria”.

Na obra de Victorino Nemésio, também se ressaltam as condições de insalubridade em que se encontravam os acadêmicos, muitos dos quais, antes de chegar à Inglaterra, provavelmente haviam sido demitidos de seus cargos universitários e até tido seus bens sequestrados pela Junta Expurgatória. O seguinte trecho da obra citada aborda a situação deles.

Os voluntários, incluindo os académicos, haviam sido nivelados com as praças de pré na 6ª classe. Mas este facto, longe de contentar os ânimos como prova prática da exequibilidade da Carta no tocante ao princípio da igualdade de condições perante a lei, levantou alta celeuma. É que os tristes tinham uma instalação horrível, amontoados em dois armazens que os ingleses não concebiam que servissem senão para arrecadar tabuões. […] Mas não cabia lá toda a gente […] Os barracões, antigas estâncias de madeiras, tinham janelas sem vidros, uns bancos, e cadeiras ou camas, em dura e escorreita alternativaPara encobrir a humidade do chão desassoalhado estavam lastrados de palha, a que o piso, a estagnação, a moinha davam um cheiro acre e fétido. (Exilados – 1828-1832: História Sentimental e Política do Liberalismo na Emigração –  Victorino Nemésio – pp. 52-53)

E o trecho seguinte, enfim, faz o contraste entre a penúria dos acadêmicos e o conforto experimentado pelos líderes do grupo de exilados e seus amigos.

Ora, enquanto a classe dos enjeitados experimentava este cálix, os amigos de Palmela e Xavier – diz Soriano – deliciavam-se na cidade, “sustentados à cavalheira”. (Exilados – 1828-1832: História Sentimental e Política do Liberalismo na Emigração –  Victorino Nemésio – pp. 53-54)

A crítica mais feroz à política segregacionista de Palmela no exílio, no entanto, foi feita em um texto de Almeida Garrett. Intitulado Carta de M. Cévola, offerecida à contemplação da Rainha, a senhora Dona Maria segunda, esse texto de oito páginas, publicado sob o nome usado por seu autor na Maçonaria, teria sido distribuído em 500 exemplares. Um trecho dessa carta que nomeia os culpados pela infeliz condição dos exilados pode ser lido abaixo, com meus destaques.

Fugimos, aos milhares, da nossa patria, sacrificamos tudo pela ingrata Realeza, que a taes chefes nos entregára; viemos curtir no exilio as magoas, as penurias, os desgostos, a fome.. . e porque se nam hade dizer a verdade? a fome tambem…. ou quanto a matámos, foi com o pam das lagrimas e da vergonha – foi com as choradas migalhas que dos sobejos de seu lauto banquete nos lança, como a caens, a arrogante compaixam de nossos opressores! […] Viemos cobertos de lagrimas, muitos de sangue, todos de oprobrio, viemos padecer e gemer na terra estrangeira; e nem a terra estrangeira nos poude ser refugio contra a dominaçam odiosa da aristocracia, por quem perdemos nossa patria. Que mais ou que menos do que isto nos tem feito os Palmellas, os Guerreiros, os Candidos […] Esta liga de aristocratas, e parasitos, de privilegiados, foi, he, e será a nossa perda, e ruina se em fim nam acordamos para nos libertamos, e os punirmos.

Carta de M. Cévola pode ser encontrada no Pelourinho, periódico clandestino editado entre 1831 e 1832 por José Pinto Rebello de Carvalho, primo de minha trisavó e certamente um membro do já citado “bando maltrapido”, quando ainda estava exilado na Inglaterra ou já na França – o local ainda é motivo de polêmica entre os estudiosos. Considerado o mais violento da facção liberal, esse periódico fazia oposição a Pedro I(V) por ter dado aos portugueses uma Carta liberal de caráter demasiadamente moderado.

pelourinhoPelourinho – Ed. José Pinto Rebello de Carvalho

Não obstante o sofrimento e as humilhações por que passaram, muitos dos liberais exilados retornaram a Portugal após a vitória de d. Pedro contra os exércitos de d. Miguel. Alguns deles inclusive para cargos políticos, como ocorreu com meu primo distante.


José Araújo é linguista e genealogista amador.

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