12-09-2018Ser músico: um excelente passaporte em Portugal Gustavo RorizSer músico: um excelente passaporte Gustavo Roriz* Aterrei em Lisboa na manhã do dia 25.05.2004, na bagagem trazia um baixo eléctrico, poucos CD, alguns livros, a módica quantia de novecentos e vinte euros e um passaporte brasileiro. Com essa escassa bagagem, sabia que iria enfrentar uma maratona até conseguir um visto para viver e trabalhar em Portugal. Teria que me manter com o pouco dinheiro que havia trazido e, num prazo muito curto, precisaria de arranjar trabalho para sobreviver. Os meus objectivos, como imigrante recém-chegado, eram: fazer o que fazia no Brasil, viver da música e estabelecer-me em Portugal. Instalei-me em casa de um amigo músico brasileiro que, através de um simples telefonema, me arranjou-me um contrato de 3 meses para tocar numa casa nocturna em Cascais, assim como um pequeno apartamento em Algés, onde me instalei pelo período do contrato. A partir daí comecei a acreditar que existia possibilidade de subsistir em Portugal. As coisas correram muito bem e o encantamento com o “novo país” era crescente dia após dia. Achei o português receptivo, atencioso e sobretudo muito tolerante, embora a forma directa de dizer as coisas me causasse uma certa estranheza. Resolvi seguir o conselho do amigo que me recebeu quando cheguei “Em terra em que ainda não se sabe bem como é, oiça mais e fale menos”. As conversas em que tentava saber qual e como seria o melhor caminho para obter um visto e finalmente poder legalizar-me, estavam longe de ser animadoras. Ninguém me dava confiança e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), com poucos funcionários então, não conseguia dar conta do imenso número de imigrantes. Empenhei-me em ler e investigar tudo sobre leis de imigração, mas sem esperança de contrato como músico. Propostas de “casamentos brancos” (só para conseguir título de residência) e contratos fictícios não faltaram. Resolvi não aceitar e pensei recorrer aos meus antepassados. Descobri que minha origem por parte de mãe (Neves), estava ligada às Beiras e por parte de pai (Roriz), ao Minho. Quanto aos Neves, não cheguei a saber quem eram. Quanto à família Roriz, descobri que descendia do Sargento-mor António Ferreira Roriz, minhoto, estabelecido nas Marianas, Minas Gerais, no século XIX mais propriamente em 1873, exactamente cem anos antes do dia em que nasci. A minha ascendência portuguesa estava já muito distante e lá se foram mais uma vez as minhas esperanças. O tempo passou e acabou o prazo, deveria ter ido embora do país. Recorri ao estratagema do salto a Marrocos. Claro que ao retornar tive grandes problemas no porto de Algeciras, mas depois de ouvir longo sermão do polícia espanhol, deixaram-me seguir e pude retornar a Lisboa. A partir daí tinha mais 90 dias para resolver a situação. Caso não tivesse sucesso, tinha já decidido retornar ao Brasil. Ilegal eu não ficaria. Antes de Portugal, tinha estado em Moçambique, Japão e Estados Unidos, e em nenhum tive a amarga experiência de ser imigrante ilegal. As semanas foram passando, até que recebi um telefonema do cantor Fernando Girão, com quem tinha gravado. Sempre me entusiasmou a ficar. Pelo telefone, demonstrou-se empolgado, tinha encontrado o modo de eu ficar: o Artigo 87.º, alínea g),1 que dizia que pessoas ligadas ao desporto e às artes podiam pedir residência directa, desde que representassem relevância para o país.2 Que importância poderia eu ter para Portugal? Fui instruído por uma atenciosa senhora do SEF a recolher tudo que comprovasse as minhas habilitações em música, assim como cartas de artistas e entidades com quem tivesse trabalhado em Portugal. Fiz uma pasta com meu diploma de licenciado em música popular pela UNICAMP em Campinas, São Paulo, e juntei cartas de referência de todos com quem tinha trabalhado como músico ou professor de música. Nenhuma dessas pessoas me negou ajuda e o próprio Fernando Girão auxiliou-me durante esta fase. Depois de tudo recolhido, dirigi-me ao SEF no dia 11.03.2005, dei entrada no pedido de residência. A funcionária trouxe-me um pequeno papel azulado que indicava que eu estava à espera de uma residência, e disse-me que a partir daquele momento estava regularizado. Podia permanecer em Portugal. Por curiosidade perguntei quantos dias poderia ter permanecido ainda como turista. Observando o passaporte, depois de uma saída da sala disse-me com um sorriso: ‘Hoje seria o seu último dia legal’. A partir daí esperei quase um ano até que em Janeiro de 2006, finalmente, recebi a carta dizendo que o pedido havia sido deferido e que deveria dirigir-me ao balcão do SEF da Avenida António Augusto de Aguiar, com o meu passaporte, comprovativo de morada, atestado criminal e duas fotos. A marcação, por coincidência foi para o dia 11.03. 2006, ou exactamente um ano depois da entrada nos papéis. Gosto de viver em Portugal, apesar de algumas dificuldades, como qualquer português, sou muito grato por tudo o que consegui neste país, que escolhi para minha nova pátria, aos trinta anos. Tenho um currículo de que não me posso queixar, e vivenciei o que não pude no meu país. Toquei com os maiores artistas portugueses e integrei o grupo Madredeus. Com todos enriqueci muito. Sou casado com uma cidadã portuguesa e frequento o Mestrado em Etnomusicologia na Universidade Nova de Lisboa. Estou integrado, não esqueço que este país me concedeu um título de residência, e que pude gozar o direito de trabalhar, estudar e viver tranquilamente, graças à condição particular de ser músico. Terei sempre em conta o reconhecimento e credibilidade que me deram como artista. Obrigado Portugal e a todos os portugueses e imigrantes que me ajudaram desde que aterrei a 25.05.2004 __________________________________________________________
Lê-se o seguinte no Artigo 87.º do Anexo “Republicação do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto (condições de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território português), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 97/99, de 26 de Julho, pelo Decreto-Lei n.º 4/2001, de 10 de Janeiro, e pelo presente diploma” do Decreto-Lei n.º 34/2003, publicado no Diário da República — I SÉRIE-A, N.º 47, página 1365, de 25 de Fevereiro, relativo à dispensa de visto de residência: ‘1 — Não carecem de visto para obtenção de autorização de residência os estrangeiros: … g) Cuja actividade no domínio científico, cultural, económico ou social seja considerada de interesse fundamental para o País.’ 2 Nota da edição: Legislação Geral - Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de Agosto (Republicado pelo artigo 21.º do Decreto Lei n.º 34/2003. de 25 de Fevereiro) h) Cuja actividade no domínio científico, cultural ou económico seja considerada de interesse fundamental para o País; (Aditado pelo artigo 1.º do Decreto Lei n.º. 4/2001 de 10 de Janeiro)...
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