Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


18-02-2008

A Inquisição em África Francisco Bettencourt


PARTE I

Inquisição em África

Organização de FRANCISCO BETHENCOURT e PHILIP HAVIK.

Colóquio realizado no Centro Cultural Gulbenkian,
em Paris, no dia 2 de Junho de 2003.

Estudos


INQUISIÇÃO EM ÁFRICA


A actividade da Inquisição
é mal conhecida,
devido à inexistência
de um tribunal próprio.
Seria necessário

o levantamento exaustivo
de denúncias e processos,
para verificar a enorme
gama de práticas
e crenças heterodoxas,
nomeadamente de
portugueses influenciados
pelo Islamismo no Nortede África ou praticantes
do Judaísmo nos rios
da Guiné, bem como
de africanos convertidos,
acusados de magia
e feitiçaria,
que regressavam
às suas religiões.

Francisco Bethencourt

Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa

Philip Havik

Área de Sociedades
e Culturas Tropicais (SOC)
Instituto de InvestigaçãoCientífica Tropical (IICT)

A África e a Inquisição
portuguesa:
novas perspectivas

AInquisição desenvolveu a sua actividade em quatro
continentes – Europa, América, Ásia e África. É verdade
que a Europa do Sul (penínsulas Ibérica e Itálica) constituiu
o centro dessa actividade, dada a densa rede de tribunais
e o elevado volume de processos contra heresias
instruídos entre os séculos XVI e XVIII. Mas o tribunal
da fé seguiu a expansão dos países ibéricos, enraizando-
se nos territórios de outros continentes no seguimento
das missões – de franciscanos, dominicanos, jesuítas,
agostinhos, capuchinhos ou carmelitas – e no quadro da
criação de estruturas eclesiásticas estáveis – paróquias,
dioceses, tribunais.

Já nas Antilhas, em 1517, encontramos uma estrutura
mista entre o tribunal eclesiástico e a Inquisição
para a perseguição dos delitos de heresia, mas é em
1569-1570 que são criados os tribunais do México e de
Lima, rede completada pelo tribunal de Cartagena de Índias
em 1610. Do lado português, a criação do tribunal
de Goa em 1560, com jurisdição sobre todo o Estado da
Índia (que compreendia os estabelecimentos portugueses
da costa oriental de África a Macau) não teve
seguimento nas outras regiões do império. A conquista
do Brasil, por exemplo, não impôs a criação de um tribunal
da Inquisição, ao contrário do que se passou na
América espanhola.

O Atlântico Sul português, estruturado pela colo


nização do Brasil e pelo tráfico de escravos para a Amé


rica, região onde se concentrou a esmagadora maioria da

REVISTA LUSÓFONA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES – Ano III, 2004 / n.º 5/6 – 21-27


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emigração portuguesa dos séculos XVII e XVIII, dependia do controlo distante do tribunal de Lisboa, estabelecido logo a seguir à fundação da Inquisição em Portugal em 15361.

As diferenças organizacionais entre os dois impérios hispânicos estão ligadas a diferenças políticas. Na América espanhola a criação dos tribunais da Inquisição foi precedida por um diploma de Filipe II onde proibia a perseguição de convertidos de origem indígena. As comunidades nativas ficaram de certa maneira protegidas: durante todo o período de funcionamento dos tribunais, o alvo foi sempre o desvio religioso no seio das comunidades de origem espanhola. No caso do tribunal de Goa não
encontramos diplomas comparáveis e a perseguição transferiu-se rapidamente dos cristãos novos de origem judaica (o primeiro alvo declarado, que concentrou as atenções dos inquisidores em 1560-1580 e de novo em 1630-1640) para os hindus e muçulmanos convertidos. O volume de processos é também radicalmente diferente:

o número de 2000 por tribunal na América espanhola contrasta com os 14000 na Inquisição de Goa, um número esmagador dadas as dimensões do Estado da Índia e da população cristianizada. As colónias portuguesas no Atlântico Sul eram controladas, do ponto de vista da ortodoxia religiosa, pelo tribunal da Inquisição de Lisboa, como já referimos. É verdade que a entrada da Inquisição no espaço atlântico foi tardia, pontuada pelas visitas de inspecção aos arquipélagos da Madeira e dos Açores em 1575-1576, 1591-1593 e 1618-1619, a Angola em 1596-1598, ao Brasil em 1591-1595 e 1618-
1620. A documentação respeitante às visitas da Inquisição de Goa aos territórios do Estado da Índia, em 1596, 1610, 1619-1621, 1636 e 1690, foi destruída, pelo que não é possível reconstituir a informação sobre as colónias portuguesas na África Oriental2.


Em todo o caso, diversos processos foram sendo instruídos contra réus residentes ou oriundos dessas áreas, pois verificou-se desde o início uma forte articulação entre a Inquisição e as estruturas eclesiásticas locais, mesmo que o estabelecimento das redes de familiares e comissários tenha sido relativamente tardio, ao longo do século XVII.
A actividade da Inquisição no Brasil é relativamente bem conhecida, as visitas foram publicadas e estudadas, as redes de comissários e familiares foram reconstituídas, os processos, os inventários de bens e mesmo as denúncias foram objecto de estudos sérios3. Dispomos actualmente de uma estatística rigorosa: são mais de mil os processos da Inquisição respeitantes a residentes e naturais do Brasil4. Este dado corresponde a metade da média dos tribunais da América espanhola, mas as diferenças não ficam por aqui: verifica-se uma forte percentagem de cristãos novos de origem judaica
entre os réus “brasileiros”, pouco mais de metade dos acusados, fenómeno que não tem paralelo nos tribunais hispano-americanos, onde os cristãos novos acusados de judaísmo não ultrapassam 20% dos réus, embora essa minoria fornecesse a esmagadora

1 Francisco Bethencourt, História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994.

2 António Baião, A Inquisição de Goa. Tentativa de história da sua origem, estabelecimento, evolução e extinção, 2 tomos, Lisboa/Coimbra, 1939-1949.

3 Arnold Wiznitzer, Os judeus e o Brasil colonial, tradução do inglês, São Paulo, Livraria Pioneira, 1966;
José Gonçalves Salvador, Cristãos novos, jesuítas e Inquisição, São Paulo, Livraria Pioneira, 1969; idem, Os
cristãos novo. Povoamento e conquista do solo brasileiro (1530-1680), São Paulo, Livraria Pioneira, 1976; Anita
Novinsky, Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654, São Paulo, Edusp, 1972; Sonia Siqueira, A Inquisição portuguesa
e a sociedade colonial, São Paulo, Ática, 1978

4 Anita Novinsky, Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 2002.

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A ÁFRICA E A INQUISIÇÃO PORTUGUESA

maioria dos excomungados (ou seja, executados). A outra diferença corresponde às heresias dos indígenas convertidos. Embora o tribunal de Lisboa tenha mostrado uma contenção ausente do tribunal de Goa, existiram numerosos processos contra as crenças desviadas dos indígenas. Um dos casos mais célebres diz respeito a uma explosão popular (indígena, mas não só) milenarista no final do século XVI no Brasil 5, mas temos muitos outros processos contra crenças desviadas de nativos.

Em África, os estabelecimentos europeus mantiveram uma expressão reduzida até à descoberta e difusão do quinino nas últimas décadas do século XIX. Eram quase todos situados na costa, à excepção da presença portuguesa no vale do Cuanza em Angola e do vale do Zambeze em Moçambique. A actividade da Inquisição é mal conhecida,
devido à inexistência de um tribunal próprio, como já referimos. Seria necessário desenvolver um trabalho idêntico ao de Anita Novinsky no Brasil, com o levantamento exaustivo de denúncias e processos, para verificar a enorme gama de práticas e crenças heterodoxas, nomeadamente de portugueses influenciados pelo islamismo no Norte de África, assimilados pelas culturas locais na África subsaariana ou praticantes do judaísmo
nos rios da Guiné, bem como de africanos convertidos, acusados de magia e
feitiçaria, que regressavam às suas religiões em Portugal ou nas colónias portuguesas de África. Em todo o caso, verifica-se uma pesquisa cada vez mais intensa sobre este assunto, pois a riqueza dos arquivos inquisitoriais (não só portugueses como também espanhóis) permite colmatar as lacunas de outros arquivos para aceder às culturas africanas e aos fenómenos de miscigenação cultural6. Foi este motivo que nos levou a organizar em Paris, em Junho de 2003, no Centro Cultural Calouste Gulbenkian, um colóquio sobre a Inquisição em África. É o resultado desse colóquio que aqui apresentamos, embora os pesquisadores convidados, na maior parte autores de teses de mestrado e de doutoramento inéditas, tenham tido tempo para reelaborar os seus textos depois do debate que suscitaram.

Os estudos que se debruçaram sobre a feitiçaria, nomeadamente de Francisco Bethencourt, Maria Benedita Araújo, Francisco Santana e José Pedro Paiva, já forneceram algumas pistas acerca da presença de Africanos entre os acusados de feitiçaria 7.
Isaías da Rosa Pereira e Didier Lahon destacaram a história das ‘irmandades de homens pretos’ em Lisboa, enquanto autores como Maria Cristina Neto e Jorge Fonseca focaram a vida dos escravos no Sul do país 8. Abordagens várias, históricas e

5 Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

6 A primeira obra significativa, embora numa perspectiva extremamente conservadora, é a de António
Brásio, Os Pretos em Portugal, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1944. Os estudos mais recentes têm outra
dimensão: A. C. C. M. Saunders, História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555), tradução
do inglês, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994; José Ramos Tinhorão, Os negros em Portugal:
uma presença silenciosa, Lisboa, Caminho, 1997.

7 Francisco Bethencourt, Imaginário da magia: feiticeiras, saludadores e nigromantes no século XVI, Lisboa,
Universidade Aberta, 1987; Maria Benedita Araujo, Magia, demónio e força mágica na tradição portuguesa (séculos
XVII e XVIII), Lisboa, Cosmos, 1994; Francisco Santana, Bruxas e curandeiros na Lisboa joanina, Lisboa,
Academia Portuguesa da História, 1996; José Pedro Paiva, Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas
(1600-1774), Lisboa, Ed. Notícias, 1997.

8 Isaías da Rosa Pereira, “Dois compromissos de Irmandades de Homens Pretos”, Arqueologia e História,
9.ª série, IV, Lisboa, 1972; Didier Lahon, Esclavage et confréries noires au Portugal durant l’Ancien Régime (1441-
1830)’, tese de doutoramento, Paris, EHESS, 2001; Maria Cristina Neto, “Os negros em Lisboa no século
XIX - Tentativa de caracterização histórico-biológica”, Garcia de Orta, Lisboa, 7 (1-2), 1994, pp. 1-14; Jorge
Fonseca, Escravos no Sul de Portugal, séculos XVI-XVII, Lisboa, Vulgata, 2002.

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antropológicas, retomaram os trabalhos pioneiros de Pedro de Azevedo e Leite de Vasconcelos
no início do século XX, aproveitando a maior acessibilidade de arquivos da
inquisição e de arquivos distritais9. A presença de africanos e seus descendentes no país
também foi objecto de debate em vários encontros, com uma frequência crescente nos
anos noventa. Seminários e conferências organizadas em Portugal por iniciativa de câmaras
municipais, universidades, centros de investigação, a Comissão dos Descobrimentos
e a UNESCO, resultaram numa maior difusão desta temática, principalmente
sobre os percursos de escravos no continente e nas ilhas. A exposição Os Negros em
Portugal realizada no Mosteiro dos Jerónimos entre Setembro de 1999 e Janeiro de 2000
foi uma iniciativa pioneira que muito contribuiu para um melhor conhecimento de comunidades
ignoradas pelo grande público 10.

Os artigos, todos baseados nas respectivas teses de doutoramento, de Didier
Lahon, Daniela Calainho e Timothy Walker, retomam dois temas que ultimamente têm
conquistado um lugar cimeiro na pesquisa sobre os africanos em Portugal. Didier
Lahon traça-nos um esboço do imaginário dos escravos transmitido pelos documentos
da inquisição durante todo o período da sua actividade (1536-1821). Baseado num
trabalho minucioso de arquivo, este investigador passa em revista elementos chave das
vidas e estratégias dos réus, como a genealogia, as relações entre as várias comunidades
(‘mouriscos’ e ‘negros’) de origem africana, a sua inserção social, as relações entre
donos e escravos, a motivação dos réus e delatores, questões raciais associadas ao conceito
de pureza de sangue. O complexo mágico-religioso africano reconstituído pelo
autor baseia-se numa análise da vivência de pessoas cativas – naturalmente filtrada
pela visão dos perseguidores. Mas o que é facto é que essas pessoas, pelo seu estatuto
social e pela sua grande mobilidade, dificilmente teriam tido oportunidade de deixar
traços da sua experiência. Se, por um lado, o controlo social produzido pelo Santo Ofício
é enorme devido à sobreposição vida pública/vida privada, por outro é notável a
elasticidade de comportamentos e a maneira como delatores e réus, apesar do seu estatuto
social marginal, aproveitaram ou manipularam a Inquisição a seu favor. Tanto
Timothy Walker como Daniela Calainho centram a sua análise nos africanos que actuaram
como curandeiros e na maneira diferenciada como a Inquisição castigou os autores
destes ‘crimes’. No âmbito da investigação sobre as superstições populares, o uso
das bolsas de ‘mandinga’ e dos encantamentos para proteger ou curar os seus donos
de males e doenças, levou africanos a serem denunciados e processados pelo Santo Ofício.
Se a difusão das ‘mandingas’ – um termo oriundo da África ocidental – e dos procedimentos
de cura africanos muito teve a ver com a existência de um mercado em
crescimento numa metrópole necessitada de médicos ‘oficiais’, a perseguição dos seus
protagonistas por crimes de magia mostrou que ‘negros’ e ‘mulatos’ formavam um
grupo pequeno mas activo entre os réus. A falta de conhecimento, por parte dos inquisidores,
das crenças e costumes africanos, vistos como marginais, implicou um processo
de aprendizagem destes rituais, que tinham aceitação tanto entre as camadas
populares como entre as camadas letradas. Durante o século XVIII as sentenças indicam
uma diferenciação entre réus livres e cativos, sendo os primeiros mais severa


9 J. Leite de Vasconcelos, “Excursão Archeológica a Alcácer do Sal: uma raça originária de África”,
O Archeologo Português, I, 1895; Pedro de Azevedo, “Os Escravos”, Archivo Histórico Português, I, 9, 1903,
pp. 289-307.

10 Didier Lahon e Maria Cristina Neto, Os Negros em Portugal - séculos XV a XIX, catálogo da exposição,
Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.

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mente punidos que os segundos, num padrão que sugere processos de aculturação (e
expectativas) distintos face aos dois grupos em questão.

Num contraste notável com esta abordagem dos africanos em Portugal, o uso de
documentação da Inquisição para traçar a história dos habitantes das possessões portuguesas
em África no mesmo período recebeu menos atenção, apesar da importância
do tema. Desde que Charles Boxer publicou as suas palestras críticas sobre as relações
raciais no império colonial português nos anos sessenta, e mais tarde sobre o
papel da igreja na expansão ultramarina, verificaram-se relativamente poucas intervenções
sobre o tema com base em fontes inquisitoriais11. Como já acima referimos, as
atenções concentraram-se no caso do Brasil, sem dar o salto para o outro lado do
Atlântico, salvo raras excepções 12. Não obstante a boa organização dos arquivos da
inquisição portuguesa e a sua concentração num local único (em contraste com os arquivos
da Inquisição espanhola) não há dúvida que os africanos convertidos de África,
tão importantes para a compreensão da presença portuguesa na região, acabaram por
ficar marginalizados pelos investigadores. Certamente, o Estado Novo não tinha qualquer
interesse em incentivar o estudo do tráfico de escravos ou daqueles que trabalharam
nas roças, nos prazos e na serventia doméstica. É verdade também que a obsessão
da Inquisição com os cristãos novos deixou marcas profundas na investigação,
contribuindo para desviar as atenções dos nativos convertidos e perseguidos por heresia
ou superstição.

A investigação de António de Almeida Mendes, Filipa Ribeiro da Silva, Philip

J. Havik, Beatriz Alonso Acero e Selma Pantoja tem como pano de fundo os núcleos
de fixação portuguesa e espanhola na África continental e insular, bem como no Norte
de África. Os seus artigos preenchem lacunas existentes no conhecimento não só dos
processos e denúncias, mas também dos habitantes destas regiões. A presença de comunidades
sefarditas na África Ocidental e as atitudes das autoridades eclesiásticas
perante a sua fixação numa zona de interesse comercial para a Coroa Portuguesa são
analisadas por António de Almeida Mendes. Baseando-se em fontes missionárias e
inquisitoriais, o autor desvenda a maneira como estas comunidades evoluíram através
de um processo de interacção com sociedades africanas baseado em vantagens mútuas.
A integração destas comunidades nas redes atlânticas geridas pela diáspora sefardita
com ligações ao Norte de Europa, Caraíbas e América Latina, bem como a crescente
mestiçagem que resultou da sua aculturação na Guiné mostraram que a política de exclusão
fracassou. Contudo, quando a costa se tornou mais um lugar de passagem que
de refúgio no século XVII e se dissiparam as distinções entre os dois grupos, iniciouse
uma segunda fase marcada por uma mudança de práticas e identidades. A estrutura
e a acção da Inquisição na África Ocidental, a saber nas Ilhas de Cabo Verde, São
Tomé e Príncipe, e Guiné são descritas por Filipa Ribeiro da Silva. Não sendo zonas
prioritárias de intervenção do Santo Ofício, os dados apontam para o impacto da
política da Coroa portuguesa de monopolizar as trocas comerciais e a actividade de
11 Charles Ralph Boxer, Relações raciais no império colonial português, 1415-1825, tradução do inglês,
Porto, Afrontamento, 1977 (publicado na versão original em Oxford em 1963, no Rio de Janeiro, primeira
tradução portuguesa, em 1967); idem, A Igreja e a expansão ibérica (1440-1770), tradução do inglês, Lisboa,
Edições 70, 1989.

12 José da Silva Horta, “Africanos e Portugueses na Documentação Inquisitorial de Luanda a Mbanza
Kongo (1596-1598)”, in Actas do Seminário Encontro de Povos e Culturas em Angola, Lisboa, CNCDP, 1997,
pp. 301-21; Selma Pantoja, “Negras em Terras de Brancas: as degredadas na rede da inquisição”.

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interesses privados, tanto fora como dentro dos circuitos oficiais. A progressiva fragilidade
da posição portuguesa resultante da concorrência europeia, a rivalidade entre
cristãos novos e cristãos velhos, a má gestão das comunidades de origem portuguesa
na região, são diversos factores que explicam as numerosas queixas sobre comportamentos
suspeitos dirigidas ao tribunal de Lisboa. As denúncias mais frequentes de judaísmo,
blasfémias e feitiçaria vindas das elites letradas, visaram no século XVII um
grupo cada vez mais alargado de cristãos novos, incidindo igualmente sobre populações
autóctones compostas por ‘negros, gentios e baptizados’.

As mulheres livres pertencentes a estas últimas camadas, as chamadas tungomás, vivendo ao redor das praças guineenses são os actores principais do ensaio de Philip Havik. Se as delações contra homens visaram europeus e cabo-verdianos, os denunciados por ‘crimes’ de superstição, ‘ritos gentios’ e feitiçaria foram mulheres oriundas destes entrepostos. Uma delas, acusada de feitiçaria, é capturada e enviada para os cárceres do tribunal de Lisboa em meados de seiscentos com a ajuda de forças seculares. O seu processo, rico em pormenores sobre a vida quotidiana, evoca a dimensão do sincretismo cultural destas comunidades à beira do Atlântico, que intriga os inquisidores. Jogando o papel de intermediários entre sociedades africanas e atlânticas, e conhecedoras de curas para os males que afligem os habitantes das praças, estas mulheres ocuparam uma posição-chave nessas comunidades. Esta dimensão feminina nas praças fortes situadas em zonas fronteiriças também sobressai dos dados extraídos dos arquivos da inquisição espanhola sobre o enclave de Oran na África do Norte por Beatriz Alonso-Acero nos séculos XVI e XVII.

Cercada por povos berberes islamizados, a crescente interacção de grupos sefarditas, muçulmanos e cristãos desperta as atenções dos inquisidores para a necessidade de reinserção dos réus na sua cultura cristã de origem. Acusadas de crenças supersticiosas, magia e feitiçaria, mulheres, algumas das quais antigas escravas, foram geralmente castigadas com o degredo, tal como soldados espanhóis ali colocados para defender uma praça isolada. Seduzidos pela ideia de deserção, os soldados (mas também
muitos mouriscos) ensaiaram a sua fuga para Espanha ou para o enclave próximo de Melilla, em maior número para as áreas vizinhas numa região muçulmana, abandonando a fé cristã.

No quadro da contestação da presença religiosa e política de Espanha no Norte de África, a preocupação principal da Inquisição era de evitar a conversão dos habitantes e a sua mobilização pelo adversário. O percurso de pessoas originárias de Angola que serviram como militares nas fortalezas portuguesas no século XVIII é traçado por Selma Pantoja para ilustrar as tensões e conflitos nas relações euro-africanas. As acusações de feitiçaria que caíram sobre dois mestiços demonstram como a conversão cristã em espaços urbanos virados para o comércio passava por uma síntese de tradições e identidades oriundas de ambas as culturas. As práticas tidas como supersticiosas pela inquisição, incluindo cerimónias fúnebres “gentias” e o uso de bolsas de ‘mandinga’ pelos réus, permitem retratar um quotidiano pouco visível num dos cantos do império. A terminologia usada para descrever os alegados crimes nos casos apresentados também reflecte influências vindas de sociedades africanas soberanas na região, além de terem conotações atlânticas pelas ligações triangulares resultantes do
comércio intercontinental.

Os artigos aqui publicados fornecem variações sobre um tema, nomeadamente a

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importância dos arquivos da inquisição para uma análise crítica das relações sócio-culturais entre os vários grupos e indivíduos que se cruzaram perante os tribunais do Santo Ofício. Na esteira da investigação recente que espreita além das instituições para incluir a sociedade civil como objecto de análise, os delatores e denunciados nos casos apresentados são vistos como pessoas com interesses e estratégias próprias. São vistos como sujeitos activos de processos de interacção que atravessam fronteiras e levaram muitos dos que foram excluídos da sociedade a se posicionar perante as autoridades e assumir a sua identidade perante a história. Ao mesmo tempo, estes trabalhos mostram que não têm razão de ser as lacunas existentes no nosso conhecimento sobre os espaços de interacção donde saíram as denúncias de comportamentos desviantes contra pessoas de ascendência africana. Esperamos que estes textos forneçam ideias e pistas aos leitores interessados nesta temática para trilhar novos caminhos e regressar às fontes, olhando além da sua dimensão persecutória para reconstruir vivências apagadas da memória colectiva.

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