Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


12-07-2018

Camões no Texas - CLÁUDIA SILVA


Camões no Texas                                                                                                                                    O centro de investigação Harry Ransom da Universidade do Texas em Austin possui um dos raros exemplares da primeira edição de Os Lusíadas , impressa em 1572, em Lisboa.            Camonianos defendem que este exemplar pertenceu ao poeta português, sendo por isso conhecido como o “de Camões”.

Cláudia SilvaCLÁUDIA SILVA em Austin 

27 de Novembro de 2

Ler e examinar um dos raros exemplares sobreviventes 

da primeira edição de Os Lusíadas – poema épico de

Luís de Camões (1524?-1580) –, impressa em 1572, 

é uma cerimónia quase religiosa, como se tivéssemos 

ido parar a uma cena do filme O Nome da Rosa .

 

Esta experiência pode ser realizada no Harry Ransom 

Center (HRC), Centro de Investigação de Humanidades

no campus da Universidade do Texas em Austin

 (UT Austin), onde está o exemplar que dizem ter 

pertencido ao próprio Camões e é um dos mais 

importantes entre os 34 que existem espalhados por 

três continentes.

 

Antes mesmo de entrar no edifício do HRC, o visitante

já tem, do lado de fora, uma ideia do incrível acervo 

que o edifício abriga. Nas fachadas de vidro estão 

impressas várias imagens – retratos de escritores e 

textos dactilografados – que evocam o arquivo. 

Lá dentro, na biblioteca, no segundo andar do edifício,

 quem quiser ver a primeira edição de Os Lusíadas tem

de criar uma conta de investigação, na página Web 

do HRC, e assistir a um vídeo de dez minutos para

aprender como se devem manusear livros raros 

e quais os procedimentos de segurança.

Qualquer pessoa pode ver a obra, mas estes requisitos 

são obrigatórios para se ter acesso à sala de visualização. 

É também recomendável contactar a instituição com 24 horas de 

antecedência, porque o livro está guardado num cofre.

 

Depois de feita a requisição da obra, uma das 

bibliotecárias aproxima-se, segurando com as duas 

mãos uma caixa vermelha de capa dura. 

Com muito cuidado desata os laços, abre a caixa, 

põe-na sobre a mesa, retira o livro e pousa-o sobre 

suportes revestidos de veludo. O visitante pode então

folhear o livro, tentar ler as marginálias

(comentários escritos à mão nas margens), com a ajuda

de duas lupas, identificando as diferenças ortográficas

em relação aos dias de hoje. Céu era ceo, muito era 

muy,e as palavras hoje terminadas em ão acabavam em

am. Não era nam..

 

A experiência de ver o exemplar de Os Lusíadas

considerado o mais importante dos que existem por 

conter manuscritos de uma testemunha ocular da morte

de Luís de Camões, é entendida por alguns como um 

mapa literário para regressar ao passado. 

A jornalista brasileira Heloísa Aruth Sturm, quando era estudante de mestrado na Universidade do Texas, em 2010, analisou este exemplar durante um semestre para a disciplina de História do Livro. Todos os alunos tinham

 de escolher um livro raro, analisá-lo e escrever um artigo académico. 

Interessada em literatura colonial, Heloísa soube desta

cópia de Os Lusíadas através do seu orientador, Ivan 

Teixeira, investigador brasileiro e na altura professor

 na UT Austin. A aluna ia pelo menos uma vez 

por semana ao HRC para analisar Os Lusíadas

Tinha medo de danificar o livro, por isso usava sempre

 luvas para o folhear. Sentia-se “num convento em 

pleno século XVI”. A paranóia era tão grande, diz ela, que

 “às vezes, até tomava cuidado para não ficar respirando em cima do livro”.


A edição “de Camões”

No entanto, não são muitos os que vivem esta 

experiência literária de Heloísa. Richard W. Oram,

 curador de livros raros do Harry Ransom Center, 

desde 1991, diz que este exemplar de Os Lusíadas 

raramente é requisitado. Porém, a sua aquisição pela 

Universidade do Texas tem sido de extrema utilidade

 para produção académica mundial sobre a obra de 

Camões.

 

K. David Jackson, director dos estudos de Português, 

na Universidade de Yale, foi professor na Universidade

do Texas em Austin, entre 1974 e 1993. Conta ao 

PÚBLICO, por email, que a universidade já tinha 

adquirido o livro quando ele foi contratado por esta 

instituição texana. E quando deu um seminário no Harry Ransom Center

 usou o livro como recurso. Na altura, mostrou-o à filóloga italiana e 

especialista em literatura medieval portuguesa Luciana Stegagno Picchio 

(1920-2008) e “ela ficou fascinada” com os 

comentários escritos à mão nas margens do livro, a 

marginália. Em 2003, o investigador publicou um 

CD-ROM, Luís de Camões e a Primeira Edição d’Os 

Lusíadas, 1572, com 29 exemplares da primeira edição, 

de várias bibliotecas internacionais.

 

O trabalho foi apresentado na 

Fundação Luso-Americana, em Lisboa. 

Na introdução textual desse CD, K. David Jackson 

explica que este exemplar foi essencial e de extrema 

influência para a academia, por causa das suas 

qualidades raras, como o “comentário marginal 

assinado por frei Joseph Índio, padre do Sul da Índia, 

convertido ao cristianismo, que Camões deveria ter 

conhecido, que era pelo menos 30 anos mais velho do 

que ele, tendo chegado a Lisboa em 1501 com a frota de

 Cabral.” O que atesta a relação entre esse frei e Camões 

são os manuscritos nas margens nas primeiras páginas

do volume. 

Todas estes dados levaram os investigadores a 

referir-se a este exemplar como "de Camões". Dizem que o poeta o teria 

consigo, quando frei Joseph o terá assistido no leito de morte.


“De Camões” para os Estados Unidos

Parte da marginália é em espanhol, incluindo traduções

de palavras portuguesas. Este facto permitiu aos 

investigadores concluírem também que este exemplar

pertenceu ao “Convento de Carmelitas Descalços de 

Guadalcázar”, em Espanha, da ordem a que pertencia

 frei Joseph Índio desde que chegou a Portugal. 

Tudo indica que o padre levou consigo o exemplar de 

Portugal para Espanha ainda no século XVI, logo após

a morte de Camões, como explica K. David Jackson no

 CD-ROM. Diz ainda o investigador americano, no seu artigo de 

introdução ao CD-ROM, que no século XIX o livro chegou às mãos do 

diplomata britânico John Hookam Frere (1769-1846), 

em Sevilha, e, em 1812, foi doado para a Holland House,

onde permaneceu durante mais de um século, com 

excepção de um empréstimo de curta duração a Sousa

Botelho, morgado de Mateus, que o usou para preparar 

a sua própria edição de Os Lusíadas, publicada em 

Paris em 1817.

 

Foi na década de 1960 que o livro foi levado para os 

Estados Unidos, tendo-se então iniciado negociações

para a sua compra pela Universidade do Texas. 

K. David Jackson conta-nos que em 1966 o poeta e 

dramaturgo português Jorge de Sena (1919-1978), 

na época professor de Literatura de Língua Portuguesa

na Universidade de Wisconsin, apanhou o autocarro em

 Madison, Wisconsin, onde morava, e viajou durante cerca de 20 horas

 para chegar a Austin, capital do Texas, para avaliar o exemplar e 

dar consultoria aos curadores do HRC. No entanto, de acordo com os 

arquivos do HRC, a compra só se efectuou no dia 4 de Março de 1970. 

As negociações foram realizadas pelo comerciante de 

livros Lew David Feldman, da House of El Dieff, 

em Nova Iorque, com quem Harry Ransom, 

então presidente da UT Austin e director do HRC, 

negociava constantemente.

 

De acordo com o curador de livros raros do HRC, 

Richard W. Oram, não há muita informação sobre a 

compra deste exemplar. Parece também não haver 

muita documentação sobre o mesmo. 

O curador não sabe as razões pelas quais o livro foi 

adquirido pela Universidade do Texas. E lembra que não há ninguém 

actualmente no HRC que tenha estado relacionado com essa compra. 

Por isso especula que uma das razões para a aquisição deste exemplar 

possa ter sido o facto de a universidade ter muito dinheiro nessa altura. 

Além disso, lidavam com o tal comerciante de livros 

Lew David Feldman, conhecido de Harry Ransom. 

Os arquivos do HRC que correspondem à compra deste

livro estão guardados em quatro caixas. Aí descobrimos

que a obra de Camões custou à universidade um pouco

mais de cem mil dólares, incluindo seguro e transporte,

valor que corresponderia hoje a cerca de 600 mil dólares.


O dilema das duas edições

O exemplar adquirido pela Universidade do Texas tem 

sido de extrema relevância para os investigadores por 

ter ajudado a desmistificar as supostas duas edições de 

1572. A pesquisa sobre os problemas associados

à primeira edição tem-se estendido por mais de três 

séculos, escreve o investigador de língua e cultura 

portuguesa na Universidade de Yale K. David Jackson 

na introdução textual do CD-ROM.

 

Tudo começou em 1685, quando um grande 

comentarista de Os Lusíadasobservou pela primeira 

vez que a imagem do pelicano no frontispício

(ou folha de rosto) estava virada em alguns exemplares

para o lado esquerdo do leitor, e em outros para o lado

 direito. Observações posteriores identificaram outras 

diferenças que pareciam estar associadas à posição do 

pelicano, como a leitura do sétimo verso da primeira 

estrofe, que começa “E entre” no caso do pelicano

 “à esquerda,” e “Entre” no caso do pelicano “à direita”. 

As duas edições ficaram conhecidas como “Ee” e “E”. 

O exemplar guardado no Harry Ransom Center 

classificar-se-ia como “E”. Mas K. David Jackson 

refere-se a estas duas edições como um mito que se 

fixou no imaginário português.

 

Desde então, vários investigadores têm-se dedicado

a responder à questão: se há duas edições diferentes, 

duas impressões do mesmo impressor, ou ainda uma

edição autêntica e outra falsa. Foi este exemplar 

adquirido pelo Harry Ransom Center, com capa de 

pergaminho e em excelente estado, que em 1976 

deu início ao estudo comparado de 34 exemplares da 

primeira edição, levada a cabo por K. David Jackson, 

e que desafiaria posteriormente a hipótese de que a 

primeira versão impressa teria sido recomposta numa 

nova edição..

 

Conforme o artigo do investigador de Yale, 

“existem em cerca de um terço dos exemplares 

sobreviventes – em 12 dos 34 – variantes que 

representam a combinação, num único volume, 

de elementos normalmente associados a “E” ou “Ee”. 

K. David Jackson concluiu, no seu artigo “Luís de

Camões e a Primeira Edição d’Os Lusíadas, 1572”, 

que os dois pelicanos, assim como “E” ou “Ee”, 

“não correspondem a edições na íntegra, mas sim a 

estados de impressão de Os Lusíadas em 1572”.

 

Dos 34 exemplares comparados, 12 estão em Portugal 

(um deles é um fac-símile), sete nos Estados Unidos, 

cinco no Brasil, dois em Espanha, quatro na Inglaterra, 

dois em França, um em Itália, e um na Alemanha. 

De acordo com o investigador, devem ainda existir outros exemplares em 

Portugal “em mãos de particulares”.

Conforme os escritos académicos de K. David Jackson, Os Lusíadas é o 

décimo sexto título publicado pela tipografia e o sexto em língua portuguesa. 

Foi impresso por António Gonçalves, que tinha oficina própria, em Lisboa, na

Costa do Castelo.

 

Apesar de não ser muito usado, este volume pode ser 

de extrema valia para várias áreas de investigação. 

Afinal, como diz o historiador inglês Peter Burke, 

professor emérito em Cambridge, as marginálias 

funcionam como uma “evidência da recepção daquilo 

que o autor emite ao leitor..” 

Marginálias dos séculos XV e XVI são entendidas, por 

alguns investigadores, como a primeira forma de 

hipertexto, de narrativa não linear. 

Peter Burke defende que as marginálias expressam 

o que o leitor considera importante, aprova ou desaprova

numa leitura.

Livros. Camões no Texas

 

   
 

Livros. Camões no Texas

Cláudia Silva

O centro de investigação Harry Ransom da Universidade do Texas em Austin possui um dos raros exemplares da prime...