04-07-2017O Mito do Português em Marrocos (L-Bartqiz)Ponte de Afoullous, Khemisset. foto Mustapha El Qadery O tema da influência portuguesa em Marrocos ultrapassa em muito os simples testemunhos edificados, assumindo aspectos pouco esclarecidos, por vezes mesmo desconcertantes, mas sobretudo pouco estudados. Existe uma conotação do português com o inexplicável, com diversos mitos que fazem parte do imaginário marroquino, por razões mais ou menos compreensíveis, às quais não serão alheios os factos de se encontrarem enraizados em comunidades rurais, com base em histórias com origem suficientemente remota para darem largas à imaginação popular, mas de memória suficientemente recente para que os mais idosos as transmitam de geração em geração. Podemos dizer que o mito do português “L-Bartqiz”, com surpreendentes referências a habitantes portugueses de grutas nos confins do deserto ou nas montanhas mais inacessíveis, a autores de pinturas rupestres em tempos imemoriais, a pontes construídas em locais longínquos que os portugueses nunca ocuparam, a prisões de cativos portugueses e até a uma condessa sedutora com pés de camelo, é tão fascinante para o senso comum marroquino, como o mito das mouras encantadas, dos piratas ou dos tapetes voadores é para o senso comum português. Agadir Tizgui. foto Michel Terrier O termo Bartqiz, também sendo comum escrever-se Bertkiz, Brtkiz, Berdqiz, Burtuqass ou mesmo Lburtayqiz, corresponde à adaptação da palavra “português” na Darija marroquina, dialecto Árabe de Marrocos, surgindo também na sua forma Árabe, Burtughali, sendo traço comum em todas elas o facto de as consoantes P e G não fazerem parte do “alifato” ou alfabeto Árabe, sendo normalmente substituídas pelo B e Q. Esta referência surge por vezes também nas formas de Nassari (Nazareno ou Cristão), Romi (Romano) ou Iroumi (termo usado pelos amazigh para a palavra Romi). Por detrás deste “mito do português” estão razões de ordem cultural, mas também de ordem ideológica, que vários autores têm estudado, no sentido de entender a sua origem e a razão da sua persistência. Para todos eles, a marca do período colonial francês é uma constante, apesar de a entenderem de forma diversa. Para a investigadora Ana Neno Leite, existiu uma enfatização da presença portuguesa em Marrocos por parte do poder colonial francês, que se manifestou, por exemplo, na edição de muitos postais ilustrados com monumentos atribuídos aos portugueses, com o intuito de justificar a própria necessidade da existência do protectorado, de uma presença “civilizadora”, enquanto garante da modernidade e progresso num meio essencialmente “pitoresco”, segundo o termo utilizado pela própria autora. “As imagens reproduzidas em série identificando o património português em Marrocos foram sobretudo as que podiam alimentar a ideia de um império glorioso e não a de um colonizador vencido. O discurso produzido nestes postais é de um domínio monumental europeu, face ao Marrocos pitoresco dos indígenas. O sentido de ser português como sinónimo de antiguidade que encontramos no imaginário de todos os marroquinos era já uma simbologia utilizada pelo Protectorado francês. A representação pictórica exprime e articula as ideologias imperialistas, que conferem uma espécie de continuidade entre um passado colonial e a dominação europeia do momento moderno.” (LEITE, 2011, pág. 18) A Ponte Portuguesa de Khenifra sobre o Oued Oum Er-Rbia Citado pela mesma autora, José Alberto Tavim vai mais longe, fazendo suas as palavras de Simon Levy sobre a generalização da coincidência entre os conceito de “testemunho antigo” e de “português”. “Mas é verdade que, a outros níveis, se Portugal não é um “ilustre desconhecido,” é pelo menos um “ilustre pouco conhecido.” Ali estão os castelos e as cidades da costa abandonados, que todos os marroquinos associam de imediato aos “antigos” portugueses, expulsos pela força do Islão e dos poderes santificados de Marrocos. […] Simon Lévy chama a atenção que a “historiografia popular,” francesa e colonial, atribui aos portugueses tudo o que é anterior ao Protectorado (francês e espanhol), salvo evidentemente as mesquitas.” (TAVIM, 2005, pag. 42) Indubitavelmente, a referência mais desconcertante que qualquer português ouvirá em Marrocos é a da associação dos portugueses à vida nas cavernas, situação que, diga-se em abono da verdade, é bastante comum. No caso das grutas situadas na costa, como as Grutas dos Portugueses em Oualidia, o facto é compreensível, sabendo-se que Portugal ocupava importantes posições junto ao mar, e que as águas do chamado Mar das Éguas ou Golfo de Cádiz estavam pejadas de corsários e piratas portugueses. A situação deixa de fazer sentido quando essas referências são feitas a locais longínquos, situados no interior do país, em lugares tão ermos como o Alto ou Anti-Atlas. Os Celeiros de Falésia de Aoujgal, no Alto Atlas. foto Kasbah Lodges Groups No Alto Atlas central existem comunidades semi-nómadas que habitam sazonalmente grutas situadas em locais de difícil acesso, como em Assaka, no Vale de Ounila, entre Ait Benhaddou e Telouet, ou como em Aoujgal, na região entre Azilal e Imilchil. Estas grutas estão associadas a impressionantes celeiros de falésia, essenciais para a sobrevivências das tribos no Inverno, e motivo de guerras inter-tribais sangrentas. No Anti-Atlas os celeiros fortificados ou “agadires”, plural “igoudar”, são também muito comuns. Os seus habitantes referem-se a eles, inexplicavelmente, como tendo origem portuguesa, chamando-lhes “igoudar n-iroumine (agadires dos romanos) ou igoudar n-bertkiz (agadires dos portugueses) ”. “Na região de Bani e nas encostas Sul do Anti-Atlas, as ruínas de antigas construções situadas no cimo das montanhas e das colinas são também conhecidas pelo termo agadir. Estas são frequentemente atribuídas aos portugueses (berdqiz), aos cristãos/romanos (iroumiyne) (…) Robert Montagne, descreve (…) este postulado fazendo referência aos igoudar n’iroumine: Sabemos que uma lenda espalhada por todo o Atlas marroquino representa os primeiros habitantes das montanhas de Marrocos como cristãos que teriam ocupado os cumes de acesso mais difícil e utilizado as cavernas hoje inacessíveis”. (RAMOU, 2013, pág. 7) Agadir Id Aissa. foto Bart Deseyn Parece consensual, na opinião dos vários autores consultados, que o advento da islamização é indissociável deste processo de identificação dos igoudar com os portugueses/cristãos, no sentido de constituir o marco entre duas épocas distintas. No entanto, a discrepância temporal entre esse momento de ruptura e a construção dos igoudar confere a esta situação um carácter ilógico, como fica patente nesta frase de Henri Terrasse citado por Salima Naji na sua obra “Greniers collectifs de l’Atlas: patrimoines du sud marocain”: “Nenhum dos agadires que subsistem hoje parecem remontar a mais de dois ou três séculos. Mas em todas as artes berberes, a data absoluta do momento conta bem menos que a antiguidade da tradição que o prolonga”. (NAJI, 2006, pág. 223) Assim, esta conotação dos igoudar aos portugueses tem um carácter extremamente curioso, já que configura uma recusa em aceitar o legado passado, enquanto formador da própria identidade cultural e social. É como se tivesse existido uma descontinuidade na História, segundo a qual, a partir de determinado momento a realidade passasse a ser distinta, como se não existisse memória, quando “o edifício é um símbolo da identidade do grupo, ele focaliza uma memória, ele é entendido na sua relação com os homens e a cultura dos lugares”. (NAJI, 2006, pág. 223) Agadir Saissid. foto Bart Deseyn Para Salima Naji, problema não é apenas a “referência constante” em relação à identificação de tudo o que é antigo com os portugueses, mas sobretudo a “amplitude dessa referência (…) Afirma-se por todo o lado com a mesma evidência que essas fortalezas arruinadas foram, antigamente, deixadas pelos portugueses”. (NAJI, 2006, pág. 225) «Como os antigos designavam todas as ruínas de celeiros situadas em locais altos como pertencentes aos “Portugueses” (lburteyqaz) a maior parte dos habitantes estão persuadidos que os portugueses habitavam antigamente o país, e encontram mesmo justificações técnicas para afirmar que se trata de construções feitas por estrangeiros.” (NAJI, 2006, pag. 226) Mas o mais surpreendente é a conclusão a que Salima Naji chega, já que o estrangeiro se torna antepassado e o antepassado se torna estrangeiro, sendo ambos um só. “Assim, os celeiros n’irumin são aqueles onde a memória de uma prática se perdeu: não se armazena aí há muito tempo; por vezes não se sabe mesmo se se tratava de um celeiro. Já que as ruínas permitem identificar uma via central e compartimentos, explica-se que se tratava de lugares de habitação, de uma antiga aldeia. Um lugar que já não tem memória da sua comunidade é um celeiro ou uma ruína de “Portugueses” (…) Por um processo de “vingança simbólica”, os portugueses do século XV e XVI foram assimilados aos autóctones vencidos pelas conquistas muçulmanas. Esta tese fundamentada permite compreender o aparente paradoxo diante do qual estamos colocados. Os antepassados são exteriores: estrangeiros, cristãos, Portugueses. E no entanto, o antepassado é autóctone.” (NAJI, 2006, pag. 228) A Cidade Perdida de Ba Hallou ou dos portugueses. foto El Nota Para além dos celeiros, outro tipo de ruínas são referenciadas como portuguesas, como a chamada Gara de Medouar, uma suposta prisão na região de Rissani, às portas do deserto, que é uma formação sedimentar do prediodo Cambrico-Devoniano em forma de “U” (ROBERT-CHARRUE, 2006, pág. 6-7), onde foi construído um muro de pedra com 6.00 metros de altura para o encerrar completamente e permitir o armazenamento de água da chuva. É também conhecida com “Montanha Oca”. A conotação com os portugueses advirá do facto de ser um local onde foi utilizada muita mão-de-obra escrava proveniente da Africa subsariana, que era posteriormente vendida a traficantes portugueses. Na mesma região, entre o Vale do Draa e o Vale do Ziz, junto às Gargantas de Mharech, a Norte de Ramlia, existem ruínas de uma aldeia “de portugueses”, regularmente visitada como tal por grupos de turistas, cujo nome é Cidade Perdida de Ba Hallou. É uma povoação muralhada e abandonada, acessível pela pista que liga Zagora a Taouz, por Tafraoute Sidi Ali, Ramlia e Ouzina. A conotação do local como assentamento português é referida pelos habitantes da região, que asseguram essa sua origem. Ponte Portuguesa em Fez Uma das referências mais comuns ao mito de L-Bartqiz é a das chamadas “pontes dos portugueses”. Existem várias, sobretudo na região de Fez-Meknés, assumindo-se como autênticos monumentos à nostalgia, situação que ainda alimenta mais o mito que já as envolve. Mustapha El Qadery, professor e investigador da Universidade Agdal de Rabat, que tem vindo a estudar o tema das pontes dos portugueses, enquanto marca do “Mythe El Bartqiz”, refere que a “marca” do período colonial está na génese desse mito, fazendo menção aos postais ilustrados enquanto meio propagandístico do mesmo: “Os postais coloniais que ilustram as antigas pontes marroquinas são categóricos. Os edifícios são obra dos Portugueses. Um contra-senso, já que a maior parte das pontes citadas situam-se nas regiões onde os Portugueses nunca puseram os pés!” (EL QADERY, 2015, obra citada) Para o autor, o objectivo do Protectorado é claro e pretendia afirmar que Marrocos não tinha capacidade de gerir o seu território e levar a cabo esse tipo de obras de engenharia, como que justificando a necessidade de um poder colonial que “ajudasse” o país a se auto-governar. El Qadery afirma mesmo que “as pontes medievais de Marrocos são na sua maioria obra das dinastias que se sucederam no território do império xerifiano. Os Almorávidas, mas sobretudo os Almóadas e os Sádidas construíram pontes e aquedutos sem que a História lhes tenha testemunhado essa capacidade. Uma reabilitação abafada durante muito tempo pela falta de interesse nacional, mas igualmente pela propaganda colonial que não se ousa rever”. (EL QADERY, 2015, obra citada) No entanto, o mesmo autor reconhece que “não há fumo sem fogo” e que as referências aos portugueses não são totalmente infundadas, mas é necessário dar-lhes o devido enquadramento. A explicação mais plausível é a da utilização de trabalho escravo português. A teoria de que as pontes foram construídas por cativos portugueses é a mais lógica e não é nova. Convém não esquecer que só na Batalha de Alcácer-Quibir foram aprisionados 16.000 portugueses, existindo várias referências à sua utilização em trabalhos forçados. Os prisioneiros da chamada “guerra do corso” eram sem dúvida alguma outra grande fonte de fornecimento de mão-de-obra para as empresas do Reino de Fez. A conotação das pontes com os portugueses poderá assim resultar da utilização de trabalho escravo português, mas também serem exemplos de um estilo importado da arquitectura portuguesa, ou seja, serem construídas “à portuguesa”. O Borj Nord de Fez
O Mito do Português em Marrocos (L-Bartqiz)
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