30-07-2008 Coisas da Índia (Rachol) José C Blanco Com a inauguração do Museu de Rachol, em Goa, a Gulbenkian concluiu o seu projecto de salvaguarda do património histórico e artístico indo-português. Um artigo do administrador da Fundação Calouste Gulbenkian que faz um balanço deste projecto, na ocasião do lançamento do livro dedicado às peças que constituem o núcleo museológico.
O Museu de Arte Sacra de Rachol, inaugurado em 1994, foi a pedra final de um esforço que a Fundação Gulbenkian vinha desenvolvendo em Goa ao longo dos anos, no sentido da salvaguarda da memória física de um património histórico e artístico comum. O projecto nasceu em 1986 de uma ideia de Mário Miranda, o conhecido artista plástico goês, justamente preocupado com o desbaratar sistemático de objectos religiosos indo-portugueses. Mário Miranda sugeriu, desde o primeiro momento, que a instalação condigna seria num edifício histórico construído pelos portugueses em Salcete: o Seminário de Rachol, perto de Margão.
Mário Miranda era então o representante local do Indian National Trust for the Arts and Cultural Heritage (INTACH), instituição semiprivada com sede em Nova Deli, especializada na protecção e restauro do património histórico e artístico indiano. A sua ideia pioneira foi aprovada e, pela primeira vez, o INTACH iria intervir não na área do património hindu, mas na do património cristão da Índia.
Integrado num antigo complexo fortificado, o edifício do primitivo Colégio de Santo Inácio de Loyola - em cuja porta principal ainda hoje se encontram as armas de D. Sebastião - foi construído na primeira metade do século XVI. Foi em Rachol que os jesuítas portugueses criaram um importante centro religioso e cultural, de cuja acção se destacou a publicação dos primeiros livros que se imprimiram no subcontinente indiano (em português, latim e concanim), saídos dos prelos da tipografia que ali funcionou entre 1615 e 1674.
A localização do museu em Rachol justificava-se, ainda, pela criação de um pólo de interesse cultural numa zona fora das rotas turísticas habituais. A existência de um museu de grande qualidade seria um meio privilegiado de tornar conhecida, não apenas aos visitantes estrangeiros, mas aos próprios Goeses, uma memória emblemática do encontro luso-indiano de culturas, à margem dos tradicionais circuitos turísticos: hotéis de luxo, praias e a (normalmente apressada) visita às igrejas de Velha Goa. Perante a reacção desde logo favorável da Fundação Gulbenkian, iniciaram-se os contactos com as autoridades religiosas, que deram o seu inteiro apoio ao projecto. Reconheceu-se que seria mais adequado adaptar para o efeito uma vasta sala onde tinha funcionado, em tempos, uma das camaratas do seminário e se encontrava desocupada.
Inúmeras e sucessivas vicissitudes - não esquecendo um período de tensão nas relações entre a Índia e Portugal provocado pelo então chamado «caso do ouro de Goa» - fizeram arrastar, durante vários anos, a concretização da iniciativa. Para dizer toda a verdade, houve momentos em que a Fundação quase perdeu a esperança na realização do projecto.
Em Junho de 1991, devidamente credenciado pelas autoridades religiosas, o Professor Doutor Teotónio de Sousa iniciou uma prospecção nas igrejas e outras instituições religiosas da Arquidiocese, com vista à elaboração de um inventário dos objectos mais significativos. Não obstante certas resistências por parte de algumas fábricas de igreja, confrarias ou cofres paroquiais, foi possível obter, por doação ou depósito, um número significativo de objectos representativos.
A pedido dos parceiros indianos da Fundação, Maria Helena Mendes Pinto, a grande especialista em arte indo-portuguesa, deslocou-se a Goa em 1992, a fim de se pronunciar sobre as instalações físicas do museu, elaborar o respectivo guião e proceder à identificação e selecção definitivas das peças a expor. A filosofia de Maria Helena Mendes Pinto baseava-se, essencialmente, na «preocupação de mostrar os mais belos objectos e, sempre que possível, os melhor conservados (...) e de viabilizar um esquema didáctico e coerente de apresentações atraentes, obedecendo aos ditames da museologia moderna (...) chamando a atenção dos visitantes para o conjunto das alfaias litúrgicas, algumas delas caídas em desuso após o Concílio Vaticano II e, agora, verdadeiras peças de museu».
A representante especial do INTACH para o projecto do Museu de Rachol, Amita Baig - a quem, do lado indiano, se ficou essencialmente devendo a concretização do projecto - garantiu à Fundação que as ideias e as sequências museológicas propostas Maria Helena Mendes Pinto seriam, como aliás o foram, escrupulosamente respeitadas.
Vencidas todas as dificuldades que se sucederam ao longo de oito anos (e que incluíram dissensões nos próprios meios religiosos de Goa), o Museu de Rachol foi inaugurado numa bela manhã de Janeiro de 1994. Além do próprio Presidente da Índia, Dr. Shanker Dayal Sharma, estavam presentes o Embaixador de Portugal, Dr. Marcello Mathias, o Governador e o Chief Minister de Goa, bem como numerosas autoridades civis e religiosas.
Demonstrando o interesse e o cuidado depositados no projecto, a Fundação continuou a acompanhar de perto o museu, ao qual Maria Helena Mendes Pinto e seus colaboradores fizeram quatro visitas depois da inauguração, tendo introduzido melhoramentos na apresentação das peças. Neles se incluiu, por exemplo, a substituição das cortinas das janelas da sala de exposições.
Logo após a inauguração, os mais importantes guias turísticos internacionais - como o Blue Guide, o Lonely Planet, ou o Rough Guide of Goa, (Penguin) passaram a referenciar, em termos elogiosos, a existência de uma «nova atracção» em Goa, que foi, aliás, objecto de uma excelente reportagem da RTP, integrada na série «Os Lugares da História».
O projecto de Rachol foi um dos mais importantes até então realizados pela Fundação Calouste Gulbenkian na Índia. Só viria a ser suplantado, anos mais tarde, pelo do Museu de Arte Sacra Indo-Portuguesa de Cochim, criado de raiz pela Fundação, graças a um grande homem da Igreja e amigo de Portugal que foi o Bispo Dr. Joseph Kureethara e do qual tão bem fala Maria João Avillez no seu notável livro Portugal. As Sete Partidas para o Mundo.
No entanto, sete anos decorridos sobre a data da inauguração, mais precisamente no dia 1 de Junho de 2001, o seminário mandou fechar as portas do museu e, por decisão dos respectivos administradores, a colecção foi transferida para outras instalações, em Velha Goa - mantendo, todavia, à entrada, a placa inaugural comemorativa da intervenção original da Fundação Gulbenkian em Rachol.
A fim de preservar a memória rigorosa do projecto - e, sobretudo, a dos objectos que ele permitiu salvar - a Fundação acaba de editar um livro com uma exaustiva documentação fotográfica, estando todas as peças originais cientificamente identificadas e descritas por Maria Helena Mendes Pinto.
As características que, por ventura, mais espantaram os visitantes do Museu de Rachol foram não apenas a elevada qualidade artística dos objectos, mas sobretudo a sua enorme diversidade, especialmente no que se refere a pinturas e esculturas, patente nas ilustrações que acompanham este texto. Foi o próprio Presidente da Índia o primeiro a notá-lo, nas palavras que pronunciou na cerimónia de inauguração: «O Seminário de Rachol foi um importante centro de conhecimento, de pesquisa e de enriquecimento espiritual. Este edifício reflecte bem o sentimento inato e natural que a Índia tem em aceitar, respeitar e acarinhar os ensinamentos de todas as religiões do Mundo. Tal como disse o Senhor Jesus Cristo, ‘há muitas mansões na casa do meu Pai’ - preceito que se encontra na base de todo o pensamento religioso indiano». Não se pode ser mais ecuménico nem mais antifundamentalista - adjectivos que definiram, de maneira exemplar, o espírito do projecto luso-indiano de Rachol.
Fonte: http://www.supergoa.com/pt/read/news_recorte.asp?c_news=423
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