Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


19-06-2017

Visita à Cidade de Safi


O Castelo do Mar e o Porto de Safi

A cidade de Safi, a Safim portuguesa, é talvez a cidade de Marrocos com maior riqueza em termos de património de origem portuguesa, não fosse a capital de Portugal no Sul do país e principal base das ofensivas para subjugação do interior do território e da ilusão da conquista de Marraquexe.

Não obstante, é uma cidade pouco referida, pouco valorizada e pouco visitada, e que apresenta o património português mais degradado, inclusivamente em risco. Convergem para esta situação vários factores, como o seu caracter industrial, a sua não inclusão nos principais itinerários turísticos e a marginalização que Safi sofreu desde sempre e que poderá ter a ver com razões eminentemente políticas (NENO, 2015, pág.214-217), com uma certa mentalidade vigente anteriormente em Marrocos de vergonha em assumir o passado da ocupação estrangeira, ou inclusivamente se relacionar com o facto de ter sido a única cidade de Marrocos em que os seus habitantes viveram juntamente com o ocupante português.

Esta situação dá sinais de querer ser alterada, existindo um interesse especial por parte das autoridades da Région de Marrakech-Safi e da Délégation de Culture de Marrakech, juntamente com o apoio da Embaixada de Portugal, no sentido de a inverter.

Percurso e pontos de interesse principais

No âmbito de uma acção de Formação para Guias Oficiais sobre Património de Origem Portuguesa em Marrocos que decorreu em Marraquexe entre 22 e 26 de Maio de 2017, organizada e realizada pelo autor deste blogue, e promovida pela Embaixada de Portugal em Marrocos, Région de Marrakech-Safi, Délégation de Marrakech du Ministère de la Culture du Royaume du Maroc e Câmara Municipal de Lagos, com a participação de membros da Association Régionale des Guides de Tourisme de Marrakech, realizou-se no dia 23 uma visita de estudo a Safi.

A visita teve como objectivos dar a conhecer aos guias turísticos o património de origem portuguesa na cidade, mostrando na prática os conceitos teóricos dos dois ateliers realizados na véspera e nos quais foram abordadas as características da ocupação portuguesa em Marrocos, em termos de singularidades e contributos da arquitectura militar e do urbanismo colonial português, e chamar a atenção para o potencial turístico da cidade e a situação de risco em que o seu património se encontra.

A Kechla ou Castelo do Alto, vendo-se à esquerda o Borj Rouah e à direita o Baluarte da Alcáçova

O percurso iniciou-se na Kechla (1), a antiga Casbah Almóada que os portugueses transformaram no Castelo do Alto, e que se denominou posteriormente Dar Soultan, com as suas estruturas defensivas do período inicial da ocupação portuguesa da cidade, o Borj Rouah e o Borj El Baroud, e o impressionante Baluarte da Alcáçova ou Borj Ar-Dar, estrutura semi-circular que tinha mais de impressionante que de eficaz, construída nos finais dos anos 30 do século XVI por Lourenço Argueiros, em vésperas do abandono da cidade pelos portugueses.

A Kechla é hoje uma amálgama de intervenções de várias épocas, sejam as Almoáda e Portuguesas já referidas, mas também as realizadas pela dinastia Sádida, no reinado de Moulay Zidane, e pelos Alauítas, concretamente por Moulay Hichan, filho do Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah, que construiu no seu interior Palácio do Gevernador e o Palácio Bahia, sendo a designação Dar Soultan ou Casa do Sultão originária nesse período.

O Escudo Nacional e as duas Esferas Armilares na fachada do Baluarte da Alcáçova

O Castelo do Alto tem graves problemas estruturais, sobretudo de fissurações e desligamento entre os seus elementos, encontrando-se inclusivamente encerrado o Museu instalado no seu interior.

O Borj Rouah já foi “atirantado” com chapas metálicas a vários níveis, verificando-se também fissuração de desligamento da estrutura com o pano da Porta de Entrada.

As estruturas portuguesas da Kechla, como aliás todas as da Cidade de Safi são do chamado período da transição, patente na coexistência de conceitos tardo-medievais com os novos conceitos da pirobalística, como se pode observar na forma arredondada dos baluartes, esticados para o exterior, na colocação de canhoneiras a vários níveis, combinadas com troneiras e mata-cães, e nas próprias características estéticas dos merlões e suas aberturas para tiro mergulhante.

A chamada Couraça da Frente de Terra, vendo-se ao fundo o Borj El Baroud

Saída do Castelo do Alto contornando o Baluarte da Alcáçova, decorado com o escudo de Portugal e duas esferas armilares na sua fachada, e prosseguindo pelo pano Nascente da Muralha até ao Borj El Baroud, local onde a mesma seguia para Norte, troço demolido pelos portugueses no âmbito da operação de “atalhamento” da cidade.

A construção dos atalhos Norte e Sul, obras projectadas pelos irmãos Arruda em 1512-1513, alterou completamente a configuração da cidade, anteriormente virada para terra, e conferiu-lhe uma forma de tenaz aberta ao Mar.

A reformulação do traçado da Muralha foi acompanhada da reformulação das suas defesas, panos, baluartes e introdução do fosso, incluindo a construção de duas importantes estruturas de defesa da Frente de Mar, o Castelo do Mar e a Couraça e, como veremos, da própria adaptação do traçado viário às necessidades de movimentar tropas no interior do recinto e garantir o seu acesso ao caminho de ronda.

Safi pré-portuguesa (fonte Jorge Correia)

O esforço financeiro da Coroa Portuguesa foi enorme no reinado de D. Manuel, tendo-se gasto a astronómica quantia para a época de 10.300.000 reais. (DIAS, 2002, pág.170)

Refira-se que a operação de “atalhamento” levada a cabo pelos portugueses não demoliu tecido edificado, mas apenas reduziu a extensão do perímetro muralhado, como prova a Gravura de Braun d Hogenberg. Dos cerca de 2.400 metros de perímetro das Muralhas, restaram cerca de 1.800 metros após as obras.

O número de torres e baluartes foi drasticamente reduzido, passando de 75 para cerca de 20. Um pequeno troço de muralha antiga foi reaproveitado, do lado Norte, formando uma espécie de “couraça da frente de terra”, rematada pelo actual Borj El-Kouas.

Gravura de Safim no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572

Safi portuguesa

Entrada virtual no antigo recinto muralhado, pela actual Rue des Forgerons (2), pela antiga Porta de Almedina, até à actual Bab Ach-Chaaba, a Porta de Almedina portuguesa, com a sua torre octogonal. O local, actual Bairro dos Oleiros, era no século XVI o Campo Exterior da cidade, onde se situavam as hortas e pastagens.

Não encontrámos até ao momento elementos sobre o Campo Exterior de Safim, mas as características topográficas da área que ficou no exterior do recinto após o atalhamento, a dispobilidade sazonal de água através do Oued Ech-Chaaba e o facto de se situar acessível pela Porta da Almedina, não deixam dúvidas que se localizaria nesta zona.

Seria uma área onde se desenvolvia uma agricultura de subsistência, de recolha de lenha e de pastagem para o gado, certamente estruturada à semelhança das de Tânger, Arzila e Mazagão, com valados e tranqueiras e vigiada por uma rede de atalaias que garantiam a sua segurança.

A Bab Chaaba e a Torre octogonal que a defende

O recuo da fortificação vai assim obrigar à construção de uma nova porta para o campo, fortemente defendida por um Baluarte octogonal, a Porta de Almedina, actual Bab Chaaba.

Estrutura urbana da Safi portuguesa

Continuação do percurso pela antiga Rua Direita (3), actual Rue du Souq ou Rua do Mercado, eixo estruturador da Safi portuguesa, que apresenta características típicas das “ruas direitas” das cidades medievais de Portugal _ ligação centro urbano-campo, concentração dos principais estabelecimentos do comércio da cidade e interrupção do caracter de “espaço canal” em vários pequenos alargamentos, criando pequenos largos, e pontuando a localização de alguns equipamentos.

Nas Praças portuguesas de Marrocos a Rua Direita unia invariavelmente o Porto ao Campo Exterior, ou Porta da Ribeira à Porta da Vila, designações que variavam, mas que mantinham o seu espírito fundamental. Era também a charneira para a abertura de eixos viários residenciais e de articulação entre áreas urbanas homogéneas.

A Muralha na Frente de Mar

Saindo da Rua Direita pelo local da antiga Porta da Ribeira, chegamos à Frente de Mar (4), constituída por um areal. Era uma área encerrada, como já foi referido, por duas estruturas _ do lado Norte, o conjunto Couraça/Baluarte da Couraça, com uma porta de saída para o exterior, a Porta dos Gafos, o que evidencia a existência de uma Gafaria ou Leprosaria fora de portas; do lado Sul, o Castelo do Mar, com as suas estruturas defensivas que mais adiante se referem, com outra porta de saída para o exterior, a Porta de Guarniz.

A Frente de Mar era a principal preocupação dos portugueses. Assegurar o seu controlo era garantir os abastecimentos à Praça, inviabilizar qualquer tentativa de ataque corsário e permitir a saída de barcos de pesca para diversificar a dieta dos habitantes.

O Fosso ao longo do pano Norte da Muralha

Ao longo do pano Norte da Muralha ainda subsiste o Fosso (5), estrutura que aumentava a altura da fortificação e afastava os atacantes, e que originalmente rodeava todo o pano muralhado. O Fosso é uma estrutura seca, militarmente muito eficaz.

A maioria dos seus troços foram entulhados e os que restam são hoje uma séria dor de cabeça para os gestores da cidade, já que se encontram transformados em vazadouros de lixos, constituindo focos de insalubridade e degradação.

A utilização pública e gestão urbanística de elementos desta natureza, em Safi ou em qualquer parte do Mundo, é um sério desafio, com soluções já postas em prática, mas que nos abstemos de referir.

Porta com cantarias quinhentistas portuguesas

Porta de inspiração manuelina

Entramos de novo na Medida pela Bab Aj-Jedid Ach-Chamali, a Porta Nova do Norte, e percorremos a Rue Al-Kouaoura (6), onde encontramos vários exemplares de portas portuguesas reutilizadas, de características Manuelinas, e outras de inspiração portuguesa.

Este arruamento insere-se num conjunto de vias de traçado regular, resultado de uma intervenção urbanística portuguesa. Numa delas, o Impasse Sidi Abdelkrim, situava-se o antigo Convento de Santa Catarina, do qual ainda restam alguns elementos edificados, como uma abóbada de nervuras.

Este conjunto de quatro arruamentos comunicariam previsivelmente todos com a rua que acompanhava a Muralha, mas dois deles terão sido cortados, numa acção de regressão urbana muito frequente nas cidades intervencionadas pelos portugueses.

Desenho urbano e equipamentos da Safi portuguesa (fonte Jorge Correia)

A intervenção urbanística, ou “arruar”, teve assim três acções fundamentais _ a afirmação da Rua Direita como eixo estruturador, a criação de um conjunto de ruas de traçado regular e a abertura de arruamentos ao longo da Muralha para facilitar a movimentação das tropas.

Seguimos atravessando a Rua Direita e entrando na Passage Bouiba, local da antiga Catedral de Safim (7).

Capela Mor da Catedral de Safim

Construída em 1519 para a única Sede de Bispado do Sul de Marrocos por D. João Subtil, era um edifício de grande presença urbana e importância no quadro dos equipamentos da cidade. A sua construção realizou-se no local onde os portugueses já tinham construído inicialmente uma igreja e que era originalmente o lugar da Mesquita Maior.

As características espaciais dos poucos vestígios que restam deste templo e a qualidade da sua construção, dão uma ideia da sua grandiosidade e valor patrimonial.

A Catedral foi demolida pelos próprios portugueses em 1542, com autorização do Papa, quando abandonaram a cidade, para que não caísse nas mãos dos infiéis, restando hoje apenas a Capela Mor e a Capela Lateral.

Porta Manuelina

Porta de inspiração Manuelina com cantarias quinhentistas portuguesas

Junto ao minarete da antiga Mesquita Maior demolida, minarete Almóada que foi mantido, situa-se a porta Manuelina mais emblemática da Medina de Safi. Foi recentemente pintada, numa acção pelos moradores da habitação em que se integra, que desvirtua as suas características, mas que ao mesmo tempo demonstra um espírito comunitário de apropriação do património pelos habitantes e de identificação com o mesmo. Aliás, a existência de tantas portas portuguesas na Medina de Safi, que vêm sendo reutilizadas ao longo dos séculos são prova disso mesmo.

Muitas delas são clara e indiscutivelmente portuguesas, outras poderão ser, mas também poderão resultar de uma influência da própria estética do Manuelino na identidade da cidade, facto que é extremamente interessante (e que aqui utilizamos o termo “de inspiração” por uma questão de rigor).

A Rue des Remparts

A Rue des Remparts (8) é um arruamento integrado no conceito de libertação da Muralha de construções, para facilidade de circulação ao longo do seu pano e garantir o acesso ao caminho de ronda, mas que tinha também outra função, que era a de ligar directamente o Castelo do Alto ao Castelo do Mar, sem passar pelo tecido urbano, constituindo assim um eixo fundamental na orgânica funcional militar da cidade.

Aliás, diga-se que, à semelhança de outras situações como em Tânger, quando os portugueses ocupavam uma cidade em que o castelo se situava do lado da terra, construíam um outro do lado do Mar, coexistindo esta dualidade de estruturas de acolhimento das autoridades responsáveis pela governação, já que para os portugueses era impensável manter o seu centro de poder longe do Mar, longe do possível auxílio ou do local para uma eventual fuga.

Interior do Castelo do Mar

A visita terminou no Castelo do Mar (9), construído nos anos de 1516-1517 por Álvaro de Ataíde, possivelmente com projecto dos Arrudas. É um castelo de forma quadrangular virado para o antigo Rossio de Guarniz, na Frente de Mar, com entrada em sifão e Torre de Menagem do lado da Cidade e dois baluartes circulares do lado do Sul, protegendo-o do exterior, um dos quais é uma Torre Albarrão de protecção a uma porta de saída para o Mar, uma espécie de Porta da Traição.

Tem 3.000 m2 de área de construção, com pátio central que contém uma extensa rampa para subida de peças de artilharia.

Os gravíssimos problemas do Castelo do Mar são conhecidos e a sua sobrevivência está ameaçada. Concorrem para tal um conjunto de causas de difícil resolução técnica e envolvendo difíceis decisões políticas e meios financeiros avultados.

A derrocada de parte da Torre Albarrã, ocorrida em Abril de 2010

Aspecto do pano que ruiu no interior do Castelo do Mar em Março de 2017

A sua construção numa falésia instável e com vazios, que inclusivamente levaram os portugueses a construir no centro do seu pátio uma abertura para dissipação da energia das ondas, o facto de a construção do porto de Safi ter concentrado a direcção da ondulação na sua base, o aumento do teor alcalino da água, resultado de descargas das indústrias de fosfatos e a presença da linha de caminho de ferro ao seu lado, imprimiram uma aceleração ao seu processo de degradação, que já provocou duas derrocadas significativas, em Abril de 2010, com a derrocada de parte da Torre Albarrã e do pano exterior Poente e em Março de 2017 com a derrocada de parte do pano interior Poente e do caminho de ronda que suportava.

O pano Poente está assim em sério risco de derrocada total, bem como se começa a verificar degradação acentuada no pano Nascente, por acção da trepidação provocada pelo caminho de ferro.

Pormenor do pano Nascente em avançado estado de degradação

Diremos como balanço da visita que a mesma veio reforçar a ideia de que a necessidade de uma intervenção concertada e estratégica no património de origem portuguesa na cidade de Safi é urgente, e a presença da Embaixadora de Portugal em Marrocos, Dra. Maria Rita Ferro, da Conselheira da Embaixada, Dra. Carla Grijó, da Representante da Região de Marrquexe-Safi e Deputada do Parlamento Marroquino, Dra. Touria Ikbal, e do Director Regional de Cultura de Marraquexe, Dr. Azzedine Karra, são prova do empenhamento das autoridades para encetar um processo de intervenção, que foi já delineado numa reunião para promover a classificação deste património como Património Mundial, e que conta com a colaboração da Universidade de Évora.

http://lematin.ma/journal/2016/un-atelier-d-etudes-preside-par-l-ambassadeur–du-portugal-au-maroc/263385.html#sthash.nk42eHsg.dpu

Algumas fotos da visita

Bibliografia:

CORREIA, Jorge. “Implantação da Cidade Portuguesa no Norte de África. Da tomada de Ceuta a meados do século XVI”. FAUP publicações. Porto 2008

DIAS, Pedro. “A Arquitectura dos Portugueses em Marrocos 1415-1769”. Livraria Minerva Editora. Coimbra, 2002 (Edição original 2000)

NENO, Ana. “Heritagisation and Social Time – Safi: a City of Resilience and Resilient People”. In “Heritages and Memories from the Sea”. 1st International Conference of the UNESCO Chair in Intangible Heritage and Traditional Know-How: Linking Heritage. 14-16 January 2015. Évora. Portugal

https://historiasdeportugalemarrocos.com/2017/06/18/visita-a-cidade-de-safi/