23-03-2018Da Rússia ao Brasil - Francisco AssisMarielle Franco foi executada porque há uma parte significativa dos poderes fácticos brasileiros que se recusa a aceitar tudo aquilo que ela representava. 1. Três dias depois da anunciada reeleição de Putin para a presidência da Rússia, Natalia Soljenítsin, a viúva do grande escritor que tanto contribuiu para a degradação da ideia comunista no Ocidente e para o fim da União Soviética, concedeu uma entrevista a um jornal diário francês. Natalia contribuiu significativamente para a construção da monumental obra do marido. Tal como ele de formação matemática, renunciou a uma brilhante carreira nesse domínio para se consagrar a um trabalho conjunto que adquiriu proporções extraordinárias. O seu olhar sobre o presente russo é de tal ordem lúcido e penetrante que nos ajuda a compreender uma realidade que à primeira vista se nos revela deveras estranha. A sua análise começa por uma referência à interpretação que Alexander Soljenitsin fazia da revolução de Fevereiro de 1917 que aboliu o regime czarista e abriu as portas para uma frágil e muito curta experiência democrático-liberal. Essa interpretação assentava na tese da pré-existência de um confronto fatal entre o poder e os sectores mais educados da sociedade russa. Esse confronto revelou-se de tal forma radical que inviabilizou qualquer possibilidade de obtenção de um compromisso. Foi nesse contexto dramático que germinaram as condições favoráveis à instauração de um regime radicalmente novo de natureza totalitária e anti-humana. Passando para o presente, Natalia Soljenitsin considera que a Rússia tem como principal desafio precisamente o de evitar a reedição de um quadro de contraposição insanável entre aquilo que ela define como a sociedade educada e o poder. Por isso mesmo não se coloca numa posição de rejeição absoluta do actual poder que Putin encarna. Reconhecendo o seu carácter autocrático, ela entende que através do diálogo será possível encaminhá-lo num sentido democrático. Explica o sucesso de Putin pelos erros cometidos internamente na primeira fase do período pós-soviético e pela atitude arrogante adoptada pelos países ocidentais, a qual teve o efeito de provocar um sentimento de humilhação nacional. É particularmente dura em relação à NATO, nomeadamente no que se refere à forma como tratou a questão da Crimeia muito antes dos recentes acontecimentos que conduziram à reintegração deste território na nação russa.Natalia Soljenitsin tem razão no diagnóstico que elabora sobre o passado recente e o presente, revela uma condescendência excessiva em relação ao poder autocrático de Putin, mas alerta para algo de extrema importância: o Ocidente não deve cortar as pontes para um diálogo com a Rússia. Putin tornou-se uma figura proeminente porque restaurou a primazia do poder central contra a arrogância de uma parte da nova oligarquia e impôs a ordem nas ruas. Fê-lo de uma forma autoritária, prescindindo da construção de um Estado de Direito, com o que isso significa de denegação do respeito pelos Direitos Humanos e de favorecimento de um clientelismo profundamente anti-democrático. Apesar de tudo isto ser verdade, e de dever ser devidamente denunciado e contrariado, o mundo Ocidental deve manter a preocupação de não atirar os russos para a área de influência chinesa. Para evitar que tal aconteça, exige-se um esforço diplomático especialmente subtil, firme na afirmação dos valores democrático-liberais e inteligente na compreensão da singularidade nacional de um país que ainda vive num período assombrado pela memória dos seus múltiplos traumas históricos. Não é fácil superar os efeitos provocados, entre outras coisas, por uma tragédia totalitária que ocupou quase todo o século XX. Não é possível ter a certeza de que Natalia Soljenitsin tenha razão nas suas advertências e nos seus prognósticos, mas vale a pena meditar no que ela diz, até por respeito pelo que foi o seu percurso excepcional de grande combatente contra o totalitarismo soviético. O desastre russo seria também de um certo modo um grande desastre Ocidental. Talvez ainda possamos ir a tempo de o evitar. 2. É cada vez mais penoso escrever o que quer que seja sobre o Brasil. O assassinato da Vereadora Marielle Franco, ocorrido às nove da noite, em pleno centro do Rio de Janeiro, revela o grau de apodrecimento institucional a que chegou um país que é uma das principais potências políticas e económicas do mundo contemporâneo. Nalguns aspectos o Brasil aproxima-se assustadoramente do estatuto de um Estado falhado, incapaz de garantir a segurança dos seus cidadãos, completamente vulnerável na protecção dos defensores dos direitos Humanos. Marielle Franco foi executada porque há uma parte significativa dos poderes fácticos brasileiros que se recusa a aceitar tudo aquilo que ela representava: a emancipação dos habitantes das favelas, das mulheres, da população de remota origem africana, das minorias sexuais. Esse Brasil atávico e preconceituoso é o principal obstáculo à plena afirmação de um país que pelo seu outro lado criativo e ousado suscita a admiração de uma grande parte do mundo. A morte de Marielle foi especial, como singular foi a sua vida, e como tal despertou uma comoção universal única. Permitiu lembrar outras mortes mais anónimas, igualmente trágicas que têm marcado o quotidiano de um país imerso numa violência insuportável. O pior de tudo é que não se vislumbra qualquer sinal positivo para o futuro imediato do Brasil.
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