Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


02-12-2017

A língua de Jéssica e fala sobre sua experiência no Fliaraxá Elaine Castanheira


Em artigo especialmente escrito para o PN, Elaine Castanheira fala sobre sua experiência no Fliaraxá e conta sobre Jéssica, a intérprete de Libras que 'desenhava as palavras do poeta no ar'

 

Jéssica, a intérprete de Libras que atuou no Fliaraxá | Divulgação

Jéssica, a intérprete de Libras que atuou no Fliaraxá | Divulgação

No primeiro dia do Fliaraxá, tudo sucumbiu ao feitiço da palavra de Mia Couto, o homenageado da VI edição. Até a arquitetura rica da sala Minas Gerais parecia se curvar com a prosa poética daquele gigante de olhar generoso e escuta em extinção. Na espiral dos versos que caminhavam no palco, uma moça desenhava as palavras do poeta no ar. A sutileza de seu quase sorriso era a única coisa que existia na sala fora da órbita de Mia.

 

No final do diálogo, despertando do mundo do moçambicano, Afonso Borges, o curador do festival, agradece ao poeta. Não apenas a ele. Apresenta ao público a desenhadora de encantamentos e chama Jéssica. Só então me permito ser de fato intrigada pelos idiomas dela. Além de libras e do português, ela exclamava uma terceira língua entre as frases, língua esta estranha e ao mesmo tempo familiar para mim.

Outros nomes da literatura conduziram o segundo dia de diálogos, desembocando genialidades na harmonia de Ondjaki, um assobiador-escritor ou um escritor-assobiador, que desamassa almas, e também de um outro poeta, Sérgio Rodrigues, que declamava versos em escala de Arnaldo Antunes. Mesmo neste processo de testemunhar aquela erupção artística, meus olhos marejados correram por Jéssica mais de uma vez. Quanto mais eu a assistia, mais sua terceira língua se expandia pela sala e despertava a admiração tanto da plateia quanto dos escritores.

O festival literário parecia ter chegado a seu ápice na noite do assobio, mas eis que o dia seguinte reservou um clarão na sala que atende pelo nome de Marcia Tiburi. Suas reflexões dançam com a ironia e se manifestam como a força da natureza. Bom seria se as palavras de Tiburi pudessem ser transformadas em inseticida que mata discursinho de fascista como baratas. Com todo meu respeito pelas baratas.

Nessas viagens que a filosofia me leva, quase me perco de Jéssica. Mas seus idiomas possuem atração suficiente para me puxar de volta e me fazer aplaudir seu trabalho com a mesma energia que eu vinha aplaudindo autores de textos que admiro, como Cristóvão Tezza, Ana Maria Gonçalves e, é claro, Mia Couto e Marcia Tiburi. Jéssica não escreve como eles, porém, percebo que sem ela o evento perderia esse véu que o faz ser um festival literário organizado para ser festival literário de verdade. Pensado para cruzar ideias, unir crianças e livros, leitor e escritor, ação e utopia.

Na programação do terceiro dia, a sala Minas Gerais reuniu entre tablado e audiência boa parte dos escritores. Devo dizer que se alguma catástrofe acontecesse naquela sala, o mundo sofreria tragédia ainda maior. Pois, perderíamos um grupo de escritores que usam a criatividade como a forma mais inteligente de subversão, sendo a arte, portanto, a única ferramenta de resgate da humanidade. Foi nesta reflexão do quanto o ato de criar antecede as ações que ouvi um participante da plateia declarar para Mia Couto toda admiração e gratidão que minha voz embargada de fã não conseguiu expressar nos dois momentos em que conversei com ele sobre suas narrativas. De palavras mais puras que as minhas, o homem deu o gancho para um dos encerramentos mais belos de festival literário. Mas, o público não podia ser liberado antes que o curador e mediador da mesa agradecesse mais uma vez o trabalho de Jéssica, passando o microfone para a mesma. 

A intérprete de sinais prontamente engatou na oportunidade e se dirigiu a seus pais na plateia, ambos deficientes auditivos. A sala se movimentava em ondas de tantos aplausos e lágrimas presas em gargantas. Jéssica sorria em flor e aplaudia com os braços estendidos para o alto, virando as mãos para frente e para trás, o que a plateia imitou e encerrou o dia com um mar de palmas em Libras, me fazendo começar a compreender a terceira língua da moça.

Naquele mesmo dia, durante a descontração da programação da noite, a moça passou por mim. Jéssica! Agora era minha vez de chamá-la. Estiquei elogios ao trabalho que acompanhei por dias. Agradecida, ela contou o quanto Libras era sua primeira língua, o quanto desejou que seus pais e os demais deficientes fossem incluídos em eventos como aquele e o quanto se sentia preenchida pela realização do que projetou. Neste momento, os olhos dela molharam seu rosto e o meu. Dei-lhe um abraço apertado, retribuído com a mesma sinceridade. Compreendi ali que a terceira língua de Jéssica, tão presente entre o português e a Libras, era o amor.


 

 

* Elaine Castanheira é professora e escritora. Graduada em Letras pela UFES e especialista em Edição e Gestão Editorial pelo Núcleo de Estratégias e Políticas Editorias (Universidade Santa Ursula). Colaboradora da revista digital Obvious e da editora Raiz., 

TAGS: FLIARAXÁ

 

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