Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


22-11-2017

A maior riqueza do Brasil por João de Almeida Moreira


 João de Almeida Moreira , mora em Ribeirão Preto)  22.11.2017Inline image

 

 

Ô, ô, ô/ Não quero advogado, quero regime fechado com você/ Ô, ô, ô/ Roubar um coração é caso sério/ Sua sentença é viver na mesma cela que eu/ Ô, ô, ô." Um dos últimos êxitos do ritmo sertanejo universitário ecoa pela rua. Mas quem está a cantar? E de onde vem o som? Ninguém sabe, ninguém vê. Finalmente, um pedestre descobre: é de lá de cima, do topo de um prédio. São três limpadores de janelas, pendurados a uns 50 metros de altura numas cordas tão fininhas a ponto de prender a respiração, que animam a galera junto ao chão.

 

É feriado nacional de 15 de Novembro e os rapazes, que arriscam a vida a troco de um salário mínimo ou coisa que o valha, cantam em coro com uma alegria incontrolável no peito, indiferentes aos dramas do seu Brasil, como a omnipresente Operação Lava-Jato que serviu de inspiração à dupla sertaneja autora da música que os inspira.

Sim, porque o Brasil passa por uma Lava-Jato que levantou o tapete da corrupção e não deixou pedra sobre pedra em nenhum partido - do esquerdista mais convicto ao reacionário mais empedernido, quase todos os políticos, em maior ou menor grau, estão envolvidos numa farra de anos (de séculos, na verdade) com o dinheiro do povo.

 

Por causa desses roubos e de outros, o país passou de mais promissor dos BRIC, ainda em 2013, à pior recessão económica da sua história. De desemprego quase zero a 13 milhões de desocupados, a viver de bicos (biscates, em Portugal) para receberem mais uns tostões ao fim do mês, como provavelmente aqueles limpadores de janelas a cada feriado.

Nesse 2013, tão próximo e tão distante, os brasileiros não cabiam em si de ansiedade pela organização do Mundial de Futebol do ano seguinte e pelos Jogos Olímpicos do Rio de 2016 - afinal, terminadas as duas manifestações sobra uma dezena de elefantes brancos espalhados pelo país, alguns a servir de depósito de ônibus, outros a provocar despesas milionárias por causa de infiltrações e obras mal acabadas, quase todos com as construções sob investigação em operações subsidiárias da Lava--Jato. O Rio pós-Olímpico, em particular, entrou numa crise financeira sem precedentes que põe em causa o funcionamento de escolas, hospitais, delegacias de polícia e outros serviços básicos.

 

É lá, no seu coração, na Rocinha, maior favela do Brasil com 70 mil habitantes, que decorre uma guerra civil em resultado de uma luta de gangues que vêm assustando a já de si sacrificada população local, último sintoma de uma cidade acossada até às vísceras pela violência. A violência que parece aumentar por todo o território agora que um clima de intolerância se disseminou - são exposições de arte fechadas por atentarem contra os supostos bons costumes, credos religiosos perseguidos por outros credos religiosos, além de censuras, ofensas, patrulhas e ódios dispersos.

Depois de na primeira década do século a política ter dado sinais exteriores de maturidade, com governos globalmente positivos e ideologicamente moderados, ora de centro-direita (PSDB) ora de centro-esquerda (PT), o Brasil caiu nas mãos do que tem de mais retrógrado (o fétido PMDB e o bando de partidos clientelistas criados à sua imagem).

O presidente da República, com os seus 3% de aprovação e atingido no tutano pela Lava-Jato, cedeu na luta contra a escravidão para agradar aos coronéis do latifúndio, permitiu que se desprotegesse uma área equivalente à Dinamarca na Amazónia para servir aos interesses de mineradores, entre outros recuos civilizatórios. Em paralelo, o país sofreu em 2015 o maior desastre ambiental da sua história com o rompimento da barragem de Mariana.

E, no entanto, os limpadores de janela cantam, mesmo perdendo o feriado, e a galera no chão canta junto a eles. O Brasil canta. Quem conhece as duas realidades sabe que o velho cliché ainda cola: entre portugueses, e europeus em geral, há uma inconsciente tendência para a nostalgia; entre brasileiros, por maiores que sejam as crises da economia, da política e da sociedade, a alegria, às vezes inconsciente, é um dever, um fim, um mantra. E essa é a maior riqueza do país.

 

Cartas Do Brasil - A maior riqueza do Brasil

 

   
 

Cartas Do Brasil - A maior riqueza do Brasil

Ô, ô, ô/ Não quero advogado, quero regime fechado com você/ Ô, ô, ô/ Roubar um coração é caso sério/ Sua sentenç...

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