Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


10-05-2023

A ALDEIA MAIS PORTUGUESA DE PORTUGAL-vila de Monsanto


Imagens do filme "A Aldeia mais portuguesa de Portugal" (A vila mais portuguesa de Portugal), dirigido por António de Menezes em 1938, por ocasião do concurso "A vila mais portuguesa de Portugal", organizado pela Secretaria Nacional de Propaganda.

A vila de Monsanto foi a grande vencedora, não só pela sua beleza natural (lembre-se das suas casas construídas com enormes blocos de granito), mas também porque assinalou todas as caixas da ideologia de Salazar.

Nas fotos: Trajes tradicionais de Manhouce (distrito de Viseu/Aveiro)

 

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O concurso “A aldeia mais portuguesa de Portugal” foi organizado em 1938 pelo Secretariado de Propaganda Nacional (SPN). Este evento bianual pretendia celebrar a aldeia do território continental que “maior resistência (tivesse) oferecia (o) a decomposições e influências estranhas e (apresentasse) o mais elevado estado de conservação no mais elevado grau de pureza (numa série de) características” definidas no regulamento (SPN 1938). O concurso ficou pela sua primeira edição, mas, enquanto referente da representação nacional, continua, ainda hoje, a ter grande poder de significação, poder que sai reforçado pelo actual desconhecimento de que o título de “aldeia mais portuguesa” seria atribuído de dois em dois anos. A escolha de Monsanto teve, por isso, contornos de afirmação absoluta e definitiva.

2Este concurso trata, antes de mais, da fabricação e veiculação de uma metáfora, uma mnemónica duma cartilha nacionalista de tal forma bem construída que resistiu, quase intacta, à mudança. Em termos de relevância estrita na análise da produção cultural e estética do SPN, e de toda a vertente “civilizacional” do Estado Novo, o concurso é um dos momentos mais significativos de afirmação material da “Política do Espírito”.

  • 1 Os discursos informais não são aqui tratados. Podem-se encontrar relatos de carácter não institucio (...)
  • 2 Não tem tido suficiente eco a importância deste evento na produção científica sobre o Estado Novo. (...)

3O concurso e Monsanto, a aldeia que ganhou o primeiro prémio, são pois um objecto extraordinário para pensar as representações — e a sua construção — do país por parte do Estado Novo, afectando, por sua vez, as representações do poder, do estado, da nação, e do próprio chefe, integrando-as no universo simbólico próprio. Nesse sentido, devo especialmente atender aos discursos veiculados em espaços institucionais, dentro da hierarquia do estado, e em espaços institucionalizados, nas publicações que se referiram ao concurso.1 Esta análise reparte-se por três fontes: primeiro analisarei as representações criadas pelo poder, a construção estética das representações do Estado Novo e do país através da análise do regulamento do concurso; depois tratarei dos “discursos” veiculados pelos órgãos que tinham a função de difundir essa “utopia” e celebrar essa “construção”, para tal analisarei os artigos e reportagens publicados nos jornais nacionais, assim como os trabalhos dos jornalistas e escritores estrangeiros que produziram livros a propósito do concurso; num terceiro plano procurarei surpreender as resistências locais e as dificuldades em impor localmente este universo simbólico, terei, para isso, como fontes, alguns jornais regionais e as actas de algumas das juntas provinciais a que tive acesso. A análise destas fontes leva-me a concluir da importância do concurso, da inevitabilidade da escolha de Monsanto, assim como da génese da cristalização das imagens e dos referentes que dominaram a construção simbólica do país levada a cabo pelo Estado Novo.2

O contexto

  • 3 Durante os anos 30, houve um grande reforço do discurso folclórico, com o lançamento de concursos p (...)

41938 foi o ano da anexação da Áustria pela Alemanha de Hitler e das batalhas da Catalunha na Guerra Civil de Espanha. Dentro de fronteiras, foi a altura da reorganização administrativa do território, com a criação das províncias e a delimitação das fronteiras, da realização dos primeiros mapas de pormenor do país e de um interesse renovado pelo folclore e pelas “tradições”.3 Todos estes factores contribuíram para a elaboração do universo simbólico patente no discurso político do Estado Novo, um discurso que se confrontava com dificuldades na sua concretização no terreno (basta lembrar as dificuldades, debatidas na Assembleia Nacional, de estabelecimento das fronteiras das províncias, nomeadamente as de Trás-os-Montes e do Alto Alentejo), um discurso que era essencial para a legitimação do poder.

  • 4 Dos trabalhos que tratam deste organismo e da sua acção destaco Ramos do Ó (1993 e 1997) e Melo (19 (...)
  • 5 Argumento defendido por Ramos do Ó (1993), que remete para o último quartel do século XIX o ressurg (...)

5O SPN era o organismo responsável pela reunião destes materiais e objectos, pela elaboração dos discursos, pelo desenvolvimento de acções e programas de intervenção, e pela sistematização e difusão deste universo simbólico.4 Regional, motivos portugueses, restauro das tradições, coesão nacional são algumas das ideias fortes deste organismo, ideias que em conjunto formam o sistema nacionalista de representações indutoras de uma perspectiva linear da realidade (Ramos do Ó 1993: 54), que é a mundividência salazarista (ibid. 139). Mais do que construir uma identidade nacional, como aponta Ramos do Ó este organismo, trabalhou com imagens do país e dos portugueses, que vigoravam já desde a segunda metade do século XIX, agora adaptadas ao programa do Estado Novo.5

  • 6 Podemos sintetizar essa acção nos objectivos da revista Ilustração Portuguesa que Ferro dirigiu: “M (...)
  • 7 Nome dado ao programa político do Estado Novo para a área da produção cultural e artística, com vis (...)
  • 8 Nesse sentido, duas áreas científicas foram particularmente envolvidas no trabalho de codificação d (...)

6António Ferro, o seu primeiro director, desenvolveu no âmbito deste organismo uma acção de tal maneira conduzida que fulanizou todo o programa, isto é, tudo está marcado pela pessoa do director.6 O programa, que corresponde a uma primeira fase deste organismo (1933-1949), caracteriza-se por ser marcadamente nacionalista, fazendo eco da imagem do povo como principal e única real fonte de arte verdadeira. O conceito de Política do Espírito sintetiza este programa,7 onde se articulava história, folclore, arte popular/ artesanato com as ideias estruturantes inquestionáveis: o estado, o poder/ o chefe, deus… referentes integrativos e unificadores, tal como é o superlativo “a mais…”, noção essencial para a elaboração de universos simbólicos.8

  • 9 Nesse período são de destacar as exposições de arte popular (apresentadas em Genebra, Lisboa e Madr (...)
  • 10 Politicamente, estes objectivos começaram a ser alcançados logo no I.° Congresso da União Nacional (...)

7A dimensão das iniciativas deste secretariado levou Ramos do Ó a chamar a este período ciclo comemorativo (1993: 187) de autocelebração do estado.9 Todo este programa serviu para a criação e difusão do bom gosto, noção tão cara a Ferro e que, surgindo nos vários textos e discursos do secretário, significava verdadeiro, legítimo, original, e em certa medida único estilo próprio português, fundado na tipicidade da etnia portuguesa, fazendo do regional o conceito fundador das práticas artísticas patrocinadas pelo estado e do reaportuguesamento a missão. Todas as acções tinham, portanto, por finalidade imediata a construção/ recuperação de uma imagem da nação; a médio prazo, inculcar essa imagem como ontogénica e, a longo prazo, ir construindo uma leitura harmónica e global, isto é, totalizante, do estado, da nação, do país, do povo e da própria ideologia.10 A este momento Rosas (1994) chama, em termos institucionais e políticos, institucionalização do regime, os anos de ouro do Estado Novo, que ideológica e retoricamente vinham substituir a primeira república e, simbolicamente, se distanciavam da Espanha em guerra, em particular da república espanhola. O concurso foi uma das ferramentas dessa institucionalização, um momento chave desse ciclo comemorativo.

Capítulo 9. O concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” (1938)

 

   
 

Capítulo 9. O concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” (1938)

O concurso “A aldeia mais portuguesa de Portugal” foi organizado em 1938 pelo Secretariado de Propaganda Naciona...