08-07-2017 Francisco Correia de Herédia, o visconde republicano que sonhava com um país feliz Maria José Oliveira
O visconde republicano que sonhava com um país feliz
MARIA JOSÉ OLIVEIRA
01/02/2008 - 00:00
Há quem defenda que ele foi um "mecenas" do regicídio. Há quem diga que foi ele quem avisou D. Carlos sobre o atentado. Não há como provar as teorias. Certo é que Ribeira Brava foi um dos mentores do 28 de Janeiro. E que foram apreendidas em sua casa carabinas e pistolas poucos dias antes da morte do rei. É o que dizem os documentos inéditos que revelamos
O visconde da Ribeira Brava estava preso no dia do regicídio. Mas o seu nome não deixou de ser invocado entre os boatos que tomaram conta do país nesses dias após os assassinatos de D. Carlos e do infante Luís Filipe.
Nas suas Memórias, Raul Brandão escreve sobre um panfleto anónimo que circulava em Lisboa e no qual se podia ler "Morte aos sanguinários Afonso Costa, Alpoim e Ribeira Brava, os verdadeiros assassinos de el-rei e do príncipe real". Muitos acreditavam que o visconde, trisavô paterno de Isabel de Herédia, mulher de Duarte Pio de Bragança, teria sido um dos"mecenas" do regicídio.
O jornalista e escritor Rocha Martins (no livro O Regicício, editado pela Bonecos Rebeldes) conta que a 1 de Fevereiro corria o boato de que Francisco de Herédia, um dos filhos do visconde, era um dos regicidas. Depressa se verificou tratar-se de uma falsidade e a família real foi quem primeiro afirmou não acreditar na atoarda.
Descendente de uma das famílias mais antigas da Madeira, Francisco Correia de Herédia (1852-1918), que recebeu o título de visconde em 1871, teve um notável percurso político. Fundou o concelho da Ribeira Brava, foi deputado, exerceu o cargo de governador civil de Bragança e de Beja, foi presidente da câmara da Vidigueira, juntou-se aos dissidentes progressistas de José de Alpoim, participou na tentativa de golpe de Estado de 28 de Janeiro de 1908. Era um homem "desempenado, espadachim, enérgico, ambicioso", descreve Rocha Martins.
Um livro lançado recentemente, Dossier Regicídio: O processo desaparecido, de Mendo Castro Henriques, iliba Ribeira Brava de qualquer envolvimento no regicídio, apontando antes que foi o visconde de Pedralva (conspirador do 28 de Janeiro, descrito por Rocha Martins como "um agrónomo gordo que luzia janotismos") quem terá comprado as armas ao armeiro Gonçalo Heitor Ferreira, com loja perto da estação do Rossio. Rui Ramos, na biografia de D. Carlos, nota, porém, que no inquérito oficial sobre o regicídio (o processo continua desaparecido) o nome de Ribeira Brava surge como um dos compradores do armamento utilizado por Manuel Buíça e Alfredo da Costa. O historiador escreve ainda que os dissidentes progressistas admitiram, depois de 1910, que os regicidas "eram homens seus". Mas todos eles repetiram que a conspiração alvejava o presidente do Conselho, João Franco, e que a morte do rei nunca havia sido sequer debatida.
Apesar de o regicídio permanecer ainda sob muitas sombras, Ramos dá como provado que os mentores do 28 de Janeiro discutiram "um atentado contra o rei" e que Buíça e Costa militavam activamente nos grupos que levaram a cabo a tentativa de golpe de Estado que antecedeu por quatro dias o regicídio.
Estes assuntos nunca foram tema de conversas familiares entre os seus descendentes. António Gentil de Herédia, bisneto do visconde (filho mais velho do neto varão), afirmou ao P2 que os seus pais e os seus avós "nunca comentaram os acontecimentos". "Sempre foi ponto assente que, não só o visconde não tinha tomado parte no atentado, como teria mesmo mandado o seu filho Sebastião [o mais novo de três irmãos] a Vila Viçosa para avisar o rei de que algo se estava a preparar contra ele", disse, explicando ser esta a versão familiar.
Sobre as armas que Ribeira Brava terá comprado, António de Herédia admite que as munições se destinavam à "revolução republicana", mas considera como "pura especulação" afirmar que as mesmas seriam utilizadas para matar o rei ou João Franco.
Preso em Santa Bárbara
As desconfianças em relação a Ribeira Brava não eram de todo infundadas, já que o visconde havia sido um dos líderes da tentativa de golpe de Estado de 28 de Janeiro. Foi preso, aliás, na sequência dessa revolta. E alguns meses antes, em Agosto de 1907, fora acusado do crime de sedição.
No relato de Rocha Martins sobre os acontecimentos do dia 28 é a inexperiência dos revoltosos que causa algum desconcerto. O jornalista nota que não faltava material para a revolução - bombas, espingardas e pistolas que, guardadas nos Armazéns Leal, seriam utilizadas nos assaltos aos quartéis.
A denúncia feita por um guarda a quem foi confiado o segredo levou à necessidade de transferir as munições para outro local. "O visconde da Ribeira Brava, apesar da sua idade [56 anos], era dos que mais audaciosamente se moviam; mostrava audácias intensas, desempenamentos românticos", conta Rocha Martins.
Quando a polícia cercou os armazéns, foi o visconde quem arriscou resolver o problema: "disfarçando-se" de freguês entrou na casa comercial, ordenou que enrolassem as munições em tapetes e levou-os para sua casa. A revolução poderia concretizar-se. Mas os conspiradores não contavam com as detenções de França Borges, João Chagas e António José de Almeida. Os membros da Maçonaria e da Carbonária não idolatravam Afonso Costa (próximo do círculo de Ribeira Brava e Alpoim) como o faziam com António José de Almeida.
A intriga adensara-se e reinava a confusão entre os conspiradores. A data e a hora da revolta foram marcadas em casa de Ribeira Brava: 28 de Janeiro, às 4 da tarde, na Baixa da capital. Ribeira Brava falava em "república", para temor de alguns dos dissidentes progressistas, que preferiam, como Alpoim, uma "monarquia nova".
Os passos da rebelião foram gizados por Costa e Ribeira Brava - a proclamação da República seria feita no município. E o tiro de alerta para os revoltosos seria disparado de um lugar alto, tendo sido escolhido o elevador da Biblioteca (ou do Município, no Largo das Belas Artes), pertencente ao visconde do Ameal, também oposicionista.
O sinal só deveria acontecer depois do rapto de João Franco, feito por um grupo que iria esperá-lo à porta de sua casa. A todos os líderes da revolta foram atribuídas competências - Ribeira Brava ficaria responsável pelo Terreiro do Paço e pela ocupação dos ministérios.
O golpe falhou logo na intenção de raptar Franco - tudo por causa de uma troca de moradas. E quando um guarda municipal viu alguma confusão junto ao elevador, alertou de imediato as autoridades. Alguns dos chefes da revolta conseguiram escapar (Alpoim e Pedralva, por exemplo), mas outros não tiveram tempo para sair do ascensor, onde estavam encafuados. Entre eles estava Ribeira Brava, que foi detido juntamente com Costa e Egas Moniz.
Foram conduzidos para os calabouços do Governo Civil, mas, temendo a revolta dos maçons e dos carbonários, foram transferidos para quartéis. Ribeira Brava ficou preso no quartel de Santa Bárbara, numa cela com uma tarimba, uma bilha, um púcaro e uma manta, contam os jornais da época. Ficou naquele lugar apenas duas noites. Debilitado e atacado por uma pleurodinia acabou por ser transferido para um quarto. Saiu de lá a 6 de Fevereiro e apenas nesse dia terá sabido, conta O Século, da morte de D. Carlos e do príncipe Luís Filipe.
Carabinas apreendidas
O processo judicial de 28 de Janeiro (2º distrito criminal da comarca de Lisboa) está depositado no Fundo Crime Antigo de Lisboa, na Torre do Tombo, ainda não catalogado. Numa das muitas caixas com processos referentes a 1908, o P2 encontrou o maço de folhas, atadas por um cordel, em que estão os autos contra Afonso Costa, Francisco de Herédia, Egas Moniz, Pinto dos Santos e José Calzado.
O relatório da Polícia Civil, apenso ao processo, nota que, no "pavimento inferior" do ascensor da Biblioteca, os detidos tinham em sua posse "armas proibidas", tendo sido apreendidas caixas com balas, dinheiro, mapas da cidade e correspondência de Costa.
Uma busca feita à residência de Ribeira Brava, na rua Barata Salgueiro, resultou na apreensão de diversas armas (duas carabinas, um par de pistolas, uma espada e dois floretes), mas o visconde deu respostas lacónicas sobre o assunto. No auto de perguntas, datado de 29 de Janeiro, garantiu que nunca tinha feito parte de qualquer "conspiração ou conjuração". "E mais não disse", lê-se.
Os depoimentos prestados pelas testemunhas, na sua maioria polícias, contradiziam as palavras de Ribeira Brava. Mas o processo não passou da fase de instrução. A 5 de Fevereiro foi publicado um decreto que ordenava a libertação dos presos políticos envolvidos no golpe de 28 de Janeiro. E no dia seguinte Ribeira Brava e os companheiros estavam já na rua, atónitos com a notícia do regicídio, revelaram os jornais.
O decreto de 5 de Fevereiro terá feito respirar de alívio o visconde, que certamente não queria repetir a experiência em que se viu envolvido no Verão do ano anterior, quando fora acusado do crime de sedição numa acção judicial que só terminou no Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Na Torre do Tombo podem ler-se as mais de 200 folhas que constituem o processo e no qual eram também arguidos Alpoim, Costa, António José de Almeida, França Borges e mais dez oposicionistas. O auto reporta aos tumultos que tomaram conta da estação do Rossio na noite de 18 de Junho de 1907, por ocasião da chegada de João Franco de uma visita ao Porto. Dezenas de testemunhas afirmaram, como se pode ler, que a "algazarra" começou com "vivas à liberdade e à República". A Guarda Municipal entrou pela estação dentro e evacuou a gare, mas teve de se confrontar com a resistência dos manifestantes. Que erguiam as bengalas "em atitude agressiva". O visconde estava entre a turba que protestava.
A 7 de Agosto o juiz Vicente Ferreira emitiu um mandado de captura contra Ribeira Brava, que, no interrogatório do dia seguinte, desferiu ataques ao Governo do "ditador João Franco". Explicou que a sua presença na estação deveu-se ao facto de ter lido, nos "jornais do Governo", que ali iria realizar-se uma manifestação de apoio a Franco. Ora, sendo um "cidadão livre e democrata", entendeu que tinha "a obrigação de provar que a maioria do país" repudiava "o despotismo e o arbítrio" que governava Portugal. Em tom que se adivinha irónico ressalvou que se manifestou "de forma ordeira" apenas por "respeito" a Alpoim. Porque, na verdade, "o seu pensamento e o seu sentir iam mais além".
Foi libertado após ter pago uma fiança de 200 escudos, mas viu o processo arrastar-se até ao final do ano. O STJ confirmou, em Dezembro, a decisão do Tribunal da Relação, que absolveu todos os arguidos do crime de sublevação.
Morto na rua
Quando assistiu à concretização do sonho republicano, em 1910, escreveu a um amigo madeirense que finalmente vivia num "país feliz". Mas, conta o seu bisneto, nunca quebrou as relações com a família real, tendo mesmo pedido ao seu filho Sebastião para "abastecer o carro" de D. Manuel II para que o monarca pudesse deslocar-se para a Ericeira.
Contudo, a vida de Francisco Correia de Herédia Ribeira Brava (assim passou a assinar após abolição dos títulos nobiliárquicos, em 1910) teve um final trágico: a 16 de Outubro de 1918, durante o regime ditatorial de Sidónio Pais, é morto na rua Serpa Pinto.
Existem várias versões sobre os acontecimentos desse dia. Certo é que Ribeira Brava, então filiado no Partido Republicano Português, estava entre os mais de 100 presos que eram conduzidos desde o Governo Civil até ao Cais do Sodré, onde embarcariam para vários fortes. Os jornais divergiram quanto à origem do tiroteio que provocou seis mortos: uns diziam que o primeiro tiro fora disparado por um polícia contra os populares que assistiam ao cortejo dos presos, outros asseguravam que havia sido Ribeira Brava o primeiro a desfechar uma pistola que recebera camuflada num tacho de açorda.
Francisco de Herédia tinha 66 anos. O seu funeral primou pela discrição e apenas a família assistiu ao enterro. Está sepultado no jazigo da família Herédia, no cemitério dos Prazeres.
Francisco Correia de Herédia, 1.º Visconde da Ribeira Brava
Francisco Correia de Herédia a celebrar a implantação da República Portuguesa.
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