Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


29-06-2008

Um olhar português sobre a Índia Teresa Lacerda


No dia 24 de Outubro, inaugura-se no Museu da Cidade de Lisboa uma exposição intitulada Um olhar Indo-Português. A Índia vista pelos investigadores do Centro de História de Além-Mar (CHAM). Teresa Lacerda, investigadora do CHAM e coordenadora da exposição, explica-lhe o que vai poder ver nesta fascinante viagem fotográfica.

A Virgem Maria e a deusa hindu Kali
PanjimOs rostos entreolham-se declaradamente em descoberta com tal persistência que sentimos a pressão dos primeiros contactos sistemáticos entre Oriente e Ocidente, ocorridos em 1498, com o desembarque da tripulação de Vasco da Gama. A mesma estranheza, o mesmo paradoxo de querer encontrar o exótico que esbarra com a necessidade de tornar familiar a realidade que vamos encontrando. É conhecida a confusão feita pelos homens da armada do Gama que julgaram vislumbrar a Virgem Maria nas imagens que representavam a deusa hindu Kali. Confusão que facilmente nos provoca um sorriso condescendente, pois tão longe achamos estar de sermos apanhados em equívoco tão pouco informado. Mesmo assim, quando nos cruzamos numa rua do Campal, em Pangim (Goa), com uma Mulher hindu com um menino, o nosso inconsciente prega-nos uma partida com a associação à Virgem Maria ou a uma estátua de traço indo-português.

Goa, aliás, é destino incontornável. Aqui a cultura indiana sente-se de forma intensa em hábitos e traços tão familiares, herança de uma das primeiras sociedades interculturais da Expansão Portuguesa, nascida da política de casamentos entre portugueses e mulheres da terra, fomentada por Afonso de Albuquerque, logo a seguir à conquista de Goa, em 1510. É nesta ofensiva militar que pensamos quando subimos à Senhora do Monte, reproduzindo mentalmente o ataque do Leão dos Mares. Entre este e outros pensamentos perguntamo-nos: «Terão tido tempo - portugueses, muçulmanos e hindus - para reparar na vista?» Hoje, é possível avistar-se, como há quatro séculos atrás, a Sé Catedral, a maior do mundo colonial português, a emergir do verde, a espreitar as serpentes de água, formadas pelos rios de Goa, que a tornaram militarmente estratégica, mas que sobretudo lhe conferem uma luz aquática.

Futebol em Margão
Igreja de MargaoA fusão da qual resulta a cultura goesa ficou marcada na pedra. Em Margão, capital de Salsete, sobressai a imponente matriz, com a evocação do Espírito Santo, em frente da qual se ergue um cruzeiro de inspiração hindu. Ladeado pelas elegantes casas de velhas famílias de brâmanes cristãos, o terreiro serve hoje para a prática de futebol, algo raro numa Índia onde por toda a parte domina o cricket.

O carácter híbrido de Goa não se expressa apenas nos traços culturais mais visíveis, como a arquitectura. Na igreja de São Francisco, uma das mais impressionantes da velha cidade, fomos encontrar três mulheres descontraidamente sentadas aos pés de um altar, numa nave central grandiosa e despojada de mobiliário. Esta atitude recorda-nos como o espaço se estrutura em torno dos corpos, seguindo outras convenções. Quantos de nós se sentariam assim no chão de uma igreja, sob a vigilância atenta dos santos?

A poucos quilómetros da Goa cristã, a Goa hindu. Pondá é uma das primeiras estações na aprendizagem da Índia "profunda". Comprar um colar de flores para um derivado local do deus Shiva é certamente um bom primeiro passo. Ao percorrermos a Índia percebemos que cada rio, ou lago, é um templo a céu aberto. Em Hampi, aldeia que ocupa parte das ruínas da antiga Vijayanagar, encontrámos uma mulher que percorreu um longo caminho para buscar a montante das casas uma água mais pura do que aquela que se encontra a jusante. Água de beber, mas também água usada, nesse lugar preciso do rio, para banhos rituais matinais. Os tanques, à semelhança dos rios, concentram a população ao seu redor. Nos planaltos da Índia meridional, floresceu a partir do século VI da nossa era a dinastia dos Chalukyas. A sua primeira capital foi Badami, que cedo se guarneceu de um extraordinário conjunto de templos hindus construídos em torno de um enorme tanque. O poder evaporou-se, mas o tanque ficou e não deixou de encher-se todos os anos para servir de lavandaria à cidade.

Retrato de uma Senhora
Se a Índia foi para os Portugueses dos séculos passados uma longa linha de costa, hoje é uma estrada extensíssima, sempre em movimento, onde se vão captando rostos, o trânsito dos corpos, estrada onde se capta inesperadamente o Retrato de uma Senhora, emoldurado na janela de um autocarro colorido, que se advinha apinhado, repleto de cheiros fortes. A Índia é feita de contraste, é feita da cor parda da terra e do desbotado da monção em contraste com o vermelho das edificações mogores ou as cores fortes e infinitamente misturadas dos saris das mulheres. A cor dos mercados é tão intensa como os seus cheiros, onde mulheres vendem bananas e outros frutos, os vendedores de alimentos e vestuário misturam-se com barbeiros, alfaiates, dentistas. Mesmo na altiva fortaleza de Amber, que olha o desfiladeiro que dá acesso à estrada para Deli, somos assaltados pelos cheiros de mil e um produtos coloridos. O cromático das especiarias povoa ainda o imaginário de qualquer ocidental.

Quinhentos anos de convívio não atenuaram o fascínio pela Índia, pelo contrário, acentuaram-no. Para lá de tudo aquilo que a Índia é, profunda e vasta, contam-se, ainda, cinco séculos de descobertas mútuas e intrincadas. É urgente confrontar as nossas impressões com as memórias antigas, pois conhecer a Índia é, também, saber o que os outros souberam dela. Como escreveu Henri Michaux, "na Índia não há nada para ver, é tudo para interpretar."

O que é o CHAM

O Centro de História de Além-Mar (CHAM) é uma unidade de investigação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) que se dedica ao estudo dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa e das chamadas culturas de contacto. A exposição Um olhar Indo-Português. A Índia vista pelos investigadores do Centro de História de Além-Mar surge por ocasião do XII Seminário de História Indo-Portuguesa (www.cham.fcsh.unl.pt), que decorrerá na FCSH e na Universidade Católica Portuguesa, entre os dias 23 e 27 de Outubro e que este ano se debruça sobre o tema O Estado da Índia e os desafios europeus