Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


15-02-2008

Reis Negros no Brasil Escravista


da Folha de S.Paulo

Leia abaixo a introdução do livro "Reis Negros no Brasil Escravista - História da Festa de Coroaçao de Rei Congo" (Editora UFMG, 2002, 390 páginas), de Marina de Mello e Souza, professora de história da África na Universidade de São Paulo.

Introdução

O interesse pelas festas dos negros no âmbito das irmandades religiosas surgiu quando eu fazia a pesquisa para minha dissertação de mestrado (Passado presente. Cotidiano e festas religiosas em Parati. Dissertação de mestrado, Departamento de História, PUC/Rio, julho de 1992. Publicada como Parati. A cidade e as festas). Naquela ocasião notei que apesar da pujança que as festas populares mantinham em Parati, a despeito das reiteradas afirmativas quanto à sua decadência, as manifestações de influência nitidamente africana, como as congadas e jongos, não eram mais realizadas no município, mas existiam em várias localidades da região vizinha do vale do Paraíba. Ainda presente na memória dos mais velhos, as "danças de pretos" só eram realizadas quando grupos de Cunha, Lorena e Guaratinguetá, vinham se apresentar nas festas do Divino Espírito Santo e de São Benedito em Parati. Nesses momentos podia-se assistir aos cortejos e apresentações, ao lado da igreja, de grupos de congada e moçambique, com suas fardas, barretes, faixas e rosários cruzando o peito, bastões e guizos usados em algumas danças, tendo à frente o rei com uma coroa de papel dourado, seguido do capitão, que comandava as danças.

Mesmo sem estar atenta àquele assunto em particular, algumas questões me vieram à cabeça na época. Vendo a ausência das congadas em
Parati, enquanto em cidades vizinhas elas ainda eram realizadas, perguntei-me quais teriam sido os fatores que contribuíram para a sua manutenção em alguns lugares, enquanto em outros tinham sido completamente suprimidas. Para entender os diferentes destinos que tiveram, segundo o contexto em que ocorriam, achei que seria importante entender que relações sociais e simbólicas estariam nelas projetadas; que mecanismos levaram à sua aceitação, mesmo parcial, ou à sua repressão; quais os diferentes poderes de barganha dessas comunidades de negros e mestiços, que algumas vezes conseguiam manter espaços para suas manifestações culturais e outras vezes não.

Com essas interrogações em mente, ao iniciar nova pesquisa, propus-me a reconstituir e analisar os batuques na região do vale do Paraíba no século XIX, momentos nos quais os escravos se encontravam para se divertir, estar juntos, cantar e beber.

Com o ingresso no programa de pós-graduação do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e a aceitação do professor
Ronaldo Vainfas em ser meu orientador, o projeto passou por uma transformação radical, e aproximei os meus interesses aos dele, visando garantir uma interlocução mais rica. Dessa forma, o meu crescente interesse em culturas africanas, para perceber o que havia delas nas culturas afro-americanas, e a pesquisa de Ronaldo Vainfas acerca de uma heresia ocorrida no reino do Congo em torno de Beatriz Kimpa Vita, que durante 5 anos, até sua execução em 1706, dizia encarnar Santo Antonio, levou-me a escolher como objeto de estudo a festa de coroação de rei congo e sua relação com a história daquele reino.

Nesse percurso, o período estabelecido para minha pesquisa inseriu-se na longa duração, sendo este enfoque fundamental para a abordagem que eu propunha, relacionando com a festa negra a história de
Portugal, do Congo e da escravidão na América. Para traçar os fundamentos históricos, os significados simbólicos e a morfologia das congadas, busquei informações acerca das cerimônias da realeza em Portugal na época dos descobrimentos e da história do reino do Congo a partir dos primeiros contatos com os portugueses, tendo como pano de fundo os processos de colonização e evangelização desencadeados pelos lusitanos.


O caminho percorrido ao longo das leituras e da pesquisa me levou a enxergar a coroação de rei congo no Brasil, principalmente como ficaram registradas no século XIX, como festa que a cada ano rememorava um mito fundador de uma comunidade católica negra, na qual a África ancestral era invocada em sua versão cristianizada, representada pelo reino do Congo. Produto do encontro de culturas africanas e da cultura ibérica, a festa incorporou elementos de ambas em uma nova formação cultural, na qual os símbolos ganharam novos sentidos. Espaço de construção de identidades e de expressão de poderes, organizava as relações internas ao grupo e também as relações do grupo com a sociedade abrangente, no que diz respeito a hierarquias, exercício de poder e solidariedades. Originadas geralmente no âmbito das irmandades, as comunidades que realizavam a festa assumiam formas européias de organização para manifestar valores culturais próprios, permeados de elementos africanos.

Fruto de uma história que busco reconstruir, as coroações de rei congo ligavam-se à cristianização do reino do
Congo no final do século XV, ao espaço simbólico que o Congo ocupava na África Centro-Ocidental, tanto para africanos como para portugueses, às características particulares do tráfico transatlântico de escravos, à formação de novas comunidades de africanos escravizados e seus descendentes na América portuguesa, ao tipo de catolicismo aqui praticado e às relações entre estas comunidades e a sociedade senhorial. Tendo na festa o momento máximo de visibilidade, essas eleições de reis expressavam determinados valores e concepções de mundo por meio dos rituais realizados e dos símbolos utilizados. A minha meta foi entender esses valores e concepções, tal como podem ser apreendidos a partir dos testemunhos deixados sobre as festas.

As congadas foram fartamente descritas por folcloristas, que observaram pessoalmente sua realização, assim como analisadas por estudiosos de outras áreas, principalmente da antropologia e da literatura popular. Entretanto, quando se tratava de indicar os processos históricos que as constituíram, os estudiosos ficavam restritos ao campo das afirmativas gerais, sempre reproduzidas e nunca aprofundadas. A posição predominante apontava para suas raízes africanas, evidentes nas danças e ritmos, sendo a festa considerada reminiscências de ritos ligados à exaltação dos reis e chefes tribais. Importantes veículos de cristianização dos africanos e seus descendentes, eram vistas, ora como instrumentos da classe senhorial na domesticação dos escravos e negros livres, ora como espaços de resistência cultural desses últimos, sempre a partir de um ponto de vista que privilegiava a opressão ou a rebeldia.

O enfoque aqui proposto busca traçar o processo histórico no qual as festas de coroação de rei congo se constituíram, privilegiando a perspectiva do encontro de culturas diferentes, que, em dado contexto de dominação social, produziu manifestações culturais mestiças. Para isso foi necessário aprofundar o conhecimento da história e da cultura da África Centro-Ocidental, que compreende a região chamada pelos portugueses, dos séculos XVI ao XIX, de Congo e Angola, e preencher uma lacuna nos estudos de manifestações culturais afro-brasileiras, no que diz respeito às contribuições do mundo banto.

Concebida como um quebra-cabeças, no qual as peças vão sendo paulatinamente dadas, o argumento só começa a se mostrar completamente no final do Capítulo IV, quando os dados até então expostos passam a ser articulados, possibilitando a visualização do seu desenho total. No Capítulo I, mostro a importância dos reis, das insígnias e cerimônias que os distinguem tanto no universo cultural europeu quanto no africano, destacando, em Portugal, alguns aspectos das cerimônias ligadas à realeza e alguns mitos ligados à constituição do reino.

No Capítulo II, trago à tona um pouco da história do reino do Congo e do seu contato com os portugueses a partir do final do século XV, com destaque para o processo de conversão da elite congolesa ao cristianismo, que entre os bacongos assumiu formas bastante particulares e teve importante papel nas lutas políticas internas daquele reino. Nesse capítulo, também dou atenção aos ritos de entronização dos reis congoleses, nos quais os sacerdotes católicos passaram a ter lugar de destaque.

O Capítulo III conta um pouco da resistência contra a dominação portuguesa na África Centro-Ocidental e como as redes de tráfico se espalharam pela região, interferindo nas estruturas de poder lá existentes, fundamentais para a implantação do comércio com os europeus. Nesse capítulo também é abordado o tema da construção de comunidades negras no Novo Mundo.

O Capítulo IV aponta para a grande disseminação e persistência do costume de comunidades negras escravizadas elegerem reis como forma de organização social e expressão cultural. Geralmente associadas às irmandades religiosas, as festas comemorativas da escolha de reis negros, que representavam suas comunidades frente ao mundo senhorial, eram vistas pelos senhores como exemplo de conversão bem-sucedida, mas também traziam muito das culturas africanas. Realizadas desde o século XVI na Península Ibérica, existiram em vários lugares da América espanhola, portuguesa e na Nova Inglaterra, persistindo até os dias de hoje no Brasil, onde tiveram maior disseminação. Mais ou menos reprimidas, dependendo do contexto histórico em que ocorreram, serviram tanto a desígnios dos senhores como dos africanos e seus descendentes.

No quinto capítulo é traçado o percurso que levou à constituição de uma identidade unificada sob o manto das irmandades de "homens pretos", diluindo-se as diferenças étnicas e ganhando espaço os elementos de uma gramática cultural básica, comum a todos. É sob esse prisma que são aqui analisadas as festas de rei congo, tais como aconteciam no século XIX, tomando-se como base os relatos deixados por viajantes e memorialistas. A dança dramática apresentada nas festas é entendida como um rito que a cada ano atualizava o mito fundador de uma comunidade negra cristã, cuja identidade remetia a uma África ancestral. Produto do mundo colonial, a festa de rei congo passou por profundas transformações a partir da desagregração do sistema escravista, deixando de ser espaço privilegiado de construção e expressão de uma identidade da comunidade negra. Mesmo que os seus significados básicos permaneçam os mesmos para os que a vivem anualmente, o espaço que ocupava na sociedade como um todo se restringiu bastante, e para os que a olham de fora, ela se tornou manifestação folclórica, tradição admirada por alguns, mas percebida como deslocada no tempo.

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http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u186.shtml