Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


23-05-2016

Garçom, sirva-nos uma história de luta de classes! Ferreira Fernandes in Diário de Notícias


Na série televisiva House of Cards, Frank Underwood (Kevin Spacey), congressista e depois presidente dos Estados Unidos, é aquele que arruína todos em que toca, mesmo aqueles a que parece querer bem. Frank adorava as costeletas dum restaurante esconso de Washington - levava lá gente poderosa para conversas perigosas. Frank e Freddy, o patrão negro da tasca, tratam-se pelo nome. O velho negro não tem ilusões, nem quando Frank se faz íntimo: "És só um bom cliente, não é necessário fazeres de conta que és meu amigo." Mas, presidente, Frank leva Freddy para a Casa Branca, para mordomo - e continuam nos corredores conversas de Frank, para cá, Freddy, para lá.

Quando o empregado se quer reformar e o anuncia a Frank, este convida-o para passar umas horas com ele, como nos bons velhos tempos: "Podes fazer-me umas costeletas." Freddy percebe que ele não é mais do que isso, um criado. E di-lo com palavras duras a Frank, ainda lhe chamando Frank. Ao que este emenda: "Aqui, na Casa Branca, sou o Sr. presidente!" Às vezes expulsam-se as classes sociais, mas elas voltam sempre a galope.

José Catalão era garçom no Palácio do Planalto, a Casa Branca brasileira. Era ele que se inclinava para pôr as gotas de adoçante na xícara do presidente Lula e, mais tarde, cuidava de que não faltasse na geladeira presidencial de Dilma o queijo preferido. Como bom garçom, ele adaptava-se ao feitio do patrão.

Com Lula, contou ontem a Folha de S. Paulo, permitia-se até, de brincadeira, servir escondendo um dedo - pois sabia que o presidente, também sem um dedo, fazia gala desse passado de metalúrgico. Com Dilma, se ela se zangava por ele não servir as visitas e servi-la a ela, o garçom, a seguir, fazia questão de servir as visitas e esquecê-la a ela - ele sabia que a presidente era uma bocado quadrada quanto a formalidades. Usava uma placa ao peito dizendo maître, como aquele Eugene Allen, o primeiro negro que serviu como mordomo na Casa Branca e chegou a maître d"hotel, o chefe maior do pessoal menor, no mandato de Reagan.

Como garçom, Catalão já levava mais mandatos de palácio do que a Constituição brasileira permite a um presidente. Mas esse privilégio não o livrou de ser vítima de uma das primeiras medidas do novo governo. O presidente Michel Temer, depois da suspensão de Dilma, decidiu uma questão capital: despediu o garçom. É mais uma piada brasileira. Temer foi eleito na lista como vice de Dilma e, agora, atropelando-a, chegou a presidente. Era vice de Dilma, fica e é promovido. José Catalão, que era garçom de Dilma, é despedido por suspeita de ser pró--Dilma. Pelos vistos, ser garçom dá um estatuto de lealdade que um simples vice-presidente não tem.

Claro, o despedimento de Catalão tornou-se ontem tema político no Brasil. Lula telefonou ao seu antigo garçom a dar um abraço, muito divulgado. Quanto ao novo poder, espalhou que o garçom era espião a soldo do PT. José Catalão deveria pensar como Freddy: "São presidentes, eu sabia que deveria sobrar para mim." Ele, que viajava mais com Dilma do que o assessor dela mais próximo e chegou a apertar a mão de Obama, está agora desempregado.

Temer, que era vice de Dilma, fica e é promovido. Catalão, que era garçom de Dilma, é despedido por suspeita de ser pró-Dilma. Ser garçom dá um estatuto de lealdade que um simples vice-presidente não tem

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Catalão não chegou a ter tanto tempo de Palácio do Planalto como Eugene Allen da Casa Branca, onde passou 34 anos como mordomo. Allen teve o bom senso de morrer antes de ver o filme inspirado na sua vida de humilhado, O Mordomo, demasiado mau. Aliás, o filme para Catalão ver - ele que é negro como todos os personagens secundários aqui contados - deveria ser brasileiro: Os Últimos Dias de Getúlio. É sobre o fim do presidente Getúlio Vargas, no Rio, no Palácio do Catete, que em 1954 era o que é hoje o Palácio do Planalto, em Brasília. Nesses dias, poderoso e secundário, cabra macho mas negro sujeito a insultos, Gregório Fortunato era o chefe da guarda pessoal de Getúlio. Chamavam-lhe o Anjo Negro.

Há fotos de Fortunato, único de chapéu de feltro numa sala do Catete onde todos os outros são ministros - na verdade, também é o único de pé. Quando Getúlio discursava, no palanque ele era o mais próximo, logo atrás. Se fazia vento, Fortunato tirava um pente do bolso do casaco e alisava o cabelo do ditador (anos 40) ou do presidente eleito (anos 50). Um dia, Gregório Fortunato organizou, sem Getúlio saber, o assassinato de Carlos Lacerda, um jornalista e político da oposição. A coisa correu mal, Lacerda só foi ferido e morreu um oficial da Aviação. Com o escândalo e a indignação dos militares, Getúlio Vargas foi pressionado a demitir-se. Matou-se com um tiro.Fortunato foi preso e condenado. Em 1962, na cadeia, quando morreu, foi de morte matada e não por sua mão. Senhores e servos podem parecer ter destinos iguais, mas há sempre qualquer coisinha diferente.

21 de maio de 2016 

http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/ferreira-fernandes/interior/garcom-sirva-nos-uma-historia-de-luta-de-classes-5186005.html